O escritor José Fernandes na Feira do Livro de Joinville - S.C - Lançamento do livro Saganossa - 07/04/2014 - Da esquerda para a direita: Hilton Gorresen. Jéssica, Marlete Cardoso e José Fernandes.
José Fernandes, David Gonçalves e Odenilde Nogueira Martins
Odenilde Nogueira Martins, David Gonçalves e José Fernandes
Nasceu a 18 de março de 1946, em Alto Rio Doce, Minas Gerais, é graduado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, de 1973 a 1983, e da Universidade Federal de Goiás, de 1983 a 1995, quando se aposentou. Publicou muitos livros, destacando-se na poesia e no ensaio sobre literatura, em especial sobre a poética.
RASCUNHO
A Afonso Feliciano,
memória da humildade.
Não quero passar a vida a limpo.
Preciso ser sempre rascunho,
sempre início, vir-a-ser.
Nada de ser definitivo.
Quero apenas ser passagem.
Passagem para mim mesmo,
para meu eterno rascunho.
POÉTICA
A Aninha e Sérgio
O bisturi secciona a pele das palavras,
abre as suas artérias, conota-lhes sentidos
e lhes imprime a circularidade dos sisos
na alquimia mais li(n) das palavras.
O coração da palavra poética palpita
verdades nuas nas veias do poema;
cruas verdades sendo e acontecendo
nas longitudes limosas dos versos:
a arte poética — a latitude do ser:
encontra-lhe a morada e os mistérios —
é descobrir os ardis e os logros da linguagem.
Poesia é a sístole e a diástole da palavra
sangrando verdades plurais, com seu fundo
escuro de silêncio e inutensílio.
CAMINHOS PLURAIS
Aos padrinhos Zé Belinho e Conceição,
que conservam a memória da casa.
Viajo em caminhos plurais,
sem direção fixa, nem fichas de bordo.
Transbordo meu singular nos desvãos
encruzilhados nos arroios de meus juízos.
Atraco, a contragosto,
no porto das pedras.
Fecho o meu círculo:
morada sem portas,
nem janelas.
Mesmo assim, conservo os plurais
no meu singular.
POESIA VERDE
A Manu(o)el Bandeira de Barros que
que sabem o sangue e a seiva em poesia.
Eu faço versos como quem caminha
por vales, pedras e montanhas íngremes.
Enfrento a forte ira das palavras
que se não querem submeter às artes
de enfeitiçar menires e serpentes.
Fogem-me como imagens de sacis,
de merlins, de sereias, salamandras...
Brincam como as maléficas ondinas,
como silfos e gnomos invisíveis.
Você não precisou poier o poema;
nasceu Verso, Poema e Poesia:
Poesia verde no fundo dos olhos,
Poesia vermelha no imo da alma,
Poesia azul celeste de corpo inteiro.
LÓGICA INFANTIL
Thiago acorda no meio da noite
e sonha brinquedos nos quarenta
graus da febre tropical.
Quer furar os olhos da noite velha,
vazar o caldo do dia
e ligar os motores da cidade.
— Agora é noite. Olhe como está escuro!
— Mãe, acende o sol!!!
— Só amanhã.
— Acende!!!
— Como que vou acender o sol, menino?
— Mãe, onde fica a tomada do sol?
De
PONTO X
Goiânia: Kelpes, 2007
TOUPEIRA
Há muito conheço quem sabe a anta:
estica o nome em húmus e espinheiros
e se empoça em rios, lagos e corixos.
Conheço também quem sabe a toupeira:
marca o rumo das pedras e mede a dureza
da massa cinzenta e das contorções intestinas.
Quando alçado a um posto, não pensa o poço
e troca as mãos pelos pés, escorrega no próprio
limo e entope os trilhos de fecalomas.
Gosta muito de lavar tijolos e de tudo
que lembre inutensílios, como esfolar notas,
acarinhar bolinhas e escovar bolhas de sabão.
OPRESSÃO
Naquele tempo eu trabalhava pássaros:
vivia as direções do vento nas asas
com as gotas a escorrerem verde e azul;
brincava de estorvar pedra e limo.
Nas cores da manhã, o rio pantanoso
corria nuvens e aves afinadas a pauta
e ao contraponto das sereias, pautadas
a harmonia e ao silêncio xaraé.
Armava-me com os escudos das palavras:
queria derrotar a vadiagem do tempo
que roía as árvores e seus enfeites
de primavera para o fastio do inverno.
Agora, vivo o espaço da gaiola e seus restos
de árvore para o pulo das asas quebradas.
Dia e noite, olhos predadores me espreitam
do rés do chão, a arrastarem a gulodice
e os limites das salas vazadas a cardume.
Vejo as pantomimas dos macacos pendurados
nos saltos e nos sapatos, a grunhirem atavismos.
Para não me contaminar, fecho o bico e deslizo
minha pena pelo papel e viajo além das grades.
2-7-2004
LEITE DE PEDRA
A Maria Alves, que sabe as dobras da língua
Já vi de tudo, desde que a maçã comeu Eva,
a árvore e a serpente: gente tirar leite
de pedra, carro puxar bois e candeeiros,
água subir morro e rio correr pra trás.
Já vi as sociais máscaras da dor:
gente rir, chorar e cantar o trilho ferido,
para satisfazer a seita e o emprego,
e até babar daqui, dali e dacolá
Vi também a extensão do cambão
a frente da práxis e do carretão,
para carregar o que nunca se viu
e sequer se sabe por onde passou.
Vi lobo comer lobo; vi boi conversar,
periquito comer milho e papagaio
levar fama, cachorro casar com gato,
pantera e cobra lamberem meus pés.
Vi a mentira enlamear a verdade:
gente travestida de leão e tigre;
mas gente não é certamente,
e tigre e leão não se vestem assim.
10-02-2007
Os poetas José Fernandes, Antonio Miranda e João Carlos Taveira na Biblioteca Nacional de Brasília, durante a homenagem ao poeta goiano Affonso Felix de Souza, em set. de 2009.
ANO NOVO
José Fernandes
Renasço sempre no ano novo velho,
como renascem árvores e folhas,
flores e frutos; mas em verbo
conformado.
O verbo me conjuga e me impede
de ser folha caída, pisada, varrida,
arrastada pela ventania e convertida
em húmus ou abandonada em cova,
sem germinação.
O verbo me transmuda em insumo pó-
ético com que adubo letras e palavras
fertilizo e atavio a fôrma do poema.
Por isso, renasço sempre novo velho,
enquanto o Verbo, verbo me der.
Feliz Ano Novo em verbo substantivado!
28-12-11
José Fernandes em Brasília, durante a I BIENAL DO B DE POESIA NA RUA, no centro cultural T-BONE, lançando o livro Poesia e Ciberpoesia, em 2011.
Os poetas Antonio Miranda, Darcy França Denófrio e José Fernandes encontram-se em Goiânia, no dia 4 de abril de 2012. Foto Nildo.
[...] Mas, é nas intersecções da fresta que se ocultam as verdades que o
poeta, no afã de revelar, esconde, a fim de, torná- las múltiplas e adaptadas
a cada leitor. Não se trata de hermetismo, de criptônimos que poucos
possam enxergar; mas da multiplicação do verbo e suas conjugações como
os significados criados a partir de algum fiat já pronunciado pela boca
primeira, que sabe os internos do nada e sua possibilidades do tudo.
(FERNANDES,O interior da Letra. 2007, p.145)
Administração
Também me sinto administrador de empresas.
Administro as empresas da linguagem.
Organizo os negócios das palavras:
Divido suas dívidas nos mais variados
Câmbios de expressão e das emoções. 35
Aplico lucros, juros e dividendos
Na busca dos significados escondidos
Em alguma letra morta, de olho
Na bolsa de alguma imagem
Ou de uma sereia distraída
No coração financeiro dessa cidade.
Descubro os mistérios e enigmas
Da matemática no estilo e jogo
Todas as economias nos vocábulos
Mais promissores do mercado.
Gestiono a qualidade dos bens e serviços
e estabeleço o ponto de equilíbrio
entre a despesa e a receita das partes
mas secretas de seus balanços lexicais.
Mas o que mais administro são os recursos
Humanos das palavras em arte poética.
Procuro sinergia de grafema e sememas
Para aprisionar a essência do humano
No interior de signos e símbolos,
A fim de, mediante um Iso inusitado,
Fazer a com a palavra, na palavra e pela palavra,
O marketing
Do sentimento mais fundo
Da humanidade.
(Fernandes, José. Ponto X . 2007, p.46)
Poema Rebelde
O meu poema não nasce maduro.
Recebo apenas uma semente miúda
Que planto, rego, adubo, cultivo,
Mas diuturnamente roga meus desvelos.
O primeiro verso nasce anêmico:
Planta raquítica e descolorida.
Consulto a experiência dos especialistas
E aplico-lhe todos os tipos de vitaminas:
Lipídios, glicídios, enzimas, proteínas.
Mas ele cresce delgado e disforme.
Desbasto folhas, ramos galhos.
Penetro-lhes pelos xilemas e revolve-lhe
As entranhas, das folhas às raízes.
Mas o floema não conduz a seiva
Ás reentrâncias dos meus versos.
Muitos resistem aos encantos da arte
E são lançados à margem, na indiferença.
São os rejeitados, rebeldes ás magias
De enfeitiçar signos e símbolos...
Mesmo assim, somente depois de podas
Inúmeros e padecimentos vários,
Alguns se aproximam do reino da poesia.
2002
PERIPÉCIAS DO AMAR
Não é o fim, porque ainda falo e respiro.
Ao doce veneno e ao brusco amar, não
pude escapar, porque amei o amor e fugi
da multidão e da solidão mortal de quem
vive apenas e somente dores e mundo.
Por isso, voltaria no tempo e começaria
a envenenar-me com o fogo do verão
que me queima, sacrifica e consome;
mas me salva e me leva a amar sempre
a conhecida e a desconhecida energia
de uma mulher que me reanima o armar.
Assim, voltaria agora à casa dos ventos.
Mas, como regressar ao mar a salgar
o passado entre a onda e a areia que me
foge entre os dedos, como a vida que
se esvai, mesmo que eu tente segurá-la
com garras de águia que não perde a presa?
Esta é minha dor, minha náusea de existir
na terra, meu lugar que não chegarei a ver
sem viver o agora, porque não há viajante
que fale comigo por mais que tenha viajado
entre o ser tão longe e tão perto do amar.
Mas, se chegar a senti-las, não chegaria
a descobri-las, porque felicidade e amor
podem ser sonhos de um retorno à terra
deste amor que se foi, levado pelo malvado
tempo que a tudo arrasta, sem me avisar.
Recordando amores que ainda breves, mas
irrecuperáveis, sinto o veneno mais forte
e o punhal que me dilacera costas e peito
sem a piedade impura de recordar o que
se parecia tão bem no sempre do existir.
Não! Não posso voltar ao começo do amar
e não o faria, se o pudesse, porque o passado
é pó sem dono, e não poderia evitar tudo
que não seja o tempo passando por mim
sem poder caminhar sempre pelas veredas
que se desprendem do bem e do mal amar.
13-7-2013
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