RATO DE LIVRARIA - HILTON GÖRRESEN


(Homenagem à Feira do Livro)

Era um ratinho esperto, que se instalara numa livraria. Vez em quando alguém o via, correndo de uma estante a outra, se enfiando por brechas de livros. Viveu anos ali, convivendo com o melhor da literatura.

Lembrava da primeira obra devorada: “O queijo e os vermes”; a parte dos vermes havia deixado de lado. Quando caiu em suas mãos, digo, patas, “A Mão e a Luva”, de Machado de Assis, não conseguiu distinguir qual era a mão, qual a luva. Precisava usar óculos. Estava envelhecendo, a família resolveu interná-lo num sebo.

Deu-se bem ali, fez amizade com o dono, um velhinho simpático. Fizeram um trato, o velhinho deixava uns restos de comida e o ratinho não destruía os livros.

Era feliz. Descobriu que livros serviam para todas as ocasiões: em tempo de frio, utilizava “O Capote”, de Gogol. Precisando de companhia, buscava “O Primo Basílio”. Diversão? “O Pirotécnico Zacarias”. Certa vez, desceu da estante “Os Dez Negrinhos”, de Agatha Christie; formaram um time de futebol, ele era o goleiro. Dor de dentes, consolava-se com “Os Sofrimentos de Werther”, de Goethe. Passou a indicar obras para os leitores indecisos.

Resolveu ler Kafka, “A Metamorfose” – ficou decepcionado: o personagem se transformava numa barata nojenta. Foi um problema livrar-se da barata. Teve de apelar para “Os Caçadores de Aranha”, de David Gonçalves. Não era bem sua especialidade, mas conseguiram dar um jeito.

Com “Ratos e homens”, de Steinbeck, descobriu a distinção entre as espécies. Mas mesmo entre os ratos havia discriminação de classes; tinha os ratos brancos, reacionários, elitistas, e os ratos de laboratório, próximos do poder, que viviam a roer o “grande queijo”. Sua classe, a mais pobre, recebia o bolsa-ninhada e participava do programa “Meu esgoto, minha vida”.

Em alguns livros via a expressão “errata” – já não conseguia ler muito bem – e ficava cismando com uma companheira. Não desconfiava que ele próprio já era uma edição esgotada.

Num dia azarado, deixou cair da estante “A Ratoeira”, de Agatha Christie. Ficou com o rabinho preso. Com o barulho que fez, acordou o “Gato Preto”, de Poe. Este veio de mansinho, lambendo os beiços. Estava perdido, entre o gato e a ratoeira. Sentiu-se no “Inferno” de Dante. Sua única saída era alcançar “O Cão dos Baskervilles” para espantar o bichano.

Não conseguiu. Aí, foi uma tragédia: “Suplício na Livraria”, não sei se já escreveram.

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