Parte III
Nenhuma mulher a visitou. Havia um secreto temor de que uma visita a uma mulher adúltera e expulsa de casa fosse uma falta grave, talvez uma doença incurável. Deolinda permaneceu dentro de casa por dias: nas mãos o paninho da criança e a chupeta seca. Havia lágrimas em seus olhos inchados? Não. Olhava para o nada. No fogão, as cinzas mortas. Chovia forte e intermitente. E o frio parecia mais gelado. As nuvens escuras tinham baixado do céu e pesavam sobre os morros e as árvores. De vez em quando um trovão abrupto estourava.
Assemelhava-se a um espantalho – a pele pálida esfarinhando e as mãos mostrando os ossos --, quando alguém, no meio daquela chuva, bateu à porta. Como não ouvisse resposta, empurrou a porta, que nem estava fechada, e entrou na cozinha, gotejando água. Era uma estranha senhora, muito bem vestida, até mesmo de um jeito espalhafatoso. Após tirar o chapéu colorido, notava-se nas faces uma boa camada de pós-de-arroz e lábios carnudos tingidos de batom carmesim.
-- Bem, ora o que vejo...
Andou de um lado para o outro, rodando as longas saias, espalhando gotas de água da chuva, olhando Deolinda firmemente.
-- Então, o mundo se acabou.
Pegou uma cadeira e sentou-se bem na frente dela. Voltou a olhar firmemente, como se olhasse uma estátua sem vida.
-- Resolveu pôr fim na vida, hem!
Da bolsa retirou um maço de cigarros e ofereceu a Deolinda. Como não recebeu nenhuma resposta, ela tirou um cigarro e com um isqueiro dourado, com uma borboleta gravada, acendeu-o e, prazerosamente, deu uma longa tragada, soltando a fumaça no ar pesado da cozinha em forma de desenhos geométricos.
-- Sou Andreza, moro noutra cidade.
Nada mais acrescentou sobre a origem. Podia ser uma região vizinha ou um ermo onde Judas tivesse perdido as botas, as meias e a cueca. Da redondenza, pelo jeito de falar e de se vestir, é que não era.
Esticou as mãos bem cuidadas. Mas Deolinda continuava olhando para o nada. Talvez nem tivesse percebido a presença daquela mulher.
-- Bem, minha amiga! Se desejas cavar o poço, continue. Mas aviso: não vale a pena. Eu já passei por isso. No fundo poço encontrará mais lama e, com certeza, o retorno será muito difícil.
Mirou-a de soslaio para ver se ela, pelo menos, manifestasse algum sinal de vida. Deolinda não se mexeu. Então, ela voltou a dizer, com aspereza, enquanto andava de um lado a outro:
-- Acabe de vez com essa agonia! O mundo não dá a mínima. As pessoas, dentro de suas casas, estão pouco se lixando. Acredite ou não: cada um de nós faz menos falta de que os vermes.
A casa parecia sem vida. Deolinda era uma alma penada sentada na frente da mesa segurando o paninho e a chupeta seca. Decidida, arregaçou as mangas do vestido, foi ao fogão. Com muito custo, acendeu os gravetos. Havia um feixe de lenha no canto, ela colocou algumas achas secas e, logo, havia labaredas e o ambiente começou a receber um calor agradável.
-- Você precisa de uma boa refeição!
Verificou a despensa. Em pouco tempo, a panela de ferro fumegava e o sabor da sopa impregnava a casa.
-- Há quantos dias não come?
Deolinda olhava as paredes. O menino ausente, com certeza, rodeava-a e a chamava. Seu coração via a imagem do pequeno saltitando à sua frente. Percebia-se que, vez ou outra, ela estendia as mãos só ossos em direção dele, como se quisesse agarrá-lo. Em poucos dias que ficara fechada na casa, sua aparência tornara-se pobre demais. As mãos pele e ossos, quando não estavam estendidas para frente, estavam encostadas no ventre. Em nenhum momento dera atenção à presença daquela mulher estranha. Ouvia alguma coisa? Até podia ouvia, mas não entendia. A voz da mulher ecoava surdamente, rolava num abismo infindável.
-- Coma. Isto lhe fará bem! – disse a mulher, estendendo um prato de sopa fumegante. – Salve, pelo menos, o corpo.
Deolinda não se mexeu.
Lá fora, a chuva caía oblíqua, e a tarde ia avançando. As nuvens pesadas oprimiam. Pássaros voavam rente à relva. O frio úmido enregelava.
-- Há remédios para todas as dores, sua boba! – voltou à carga Andreza, sentando-se também à mesa e servindo-se da sopa. – A vida, minha jovem, só pode ser entendida da frente para trás. Mas devemos vivê-la para a frente. Os tempos estão ruins, pois bem, nós estamos no mundo para melhorá-lo. Agora, por favor, coma! Você ainda é carne e ossos!
Em resposta o silêncio.
-- Eu conheci o seu marido. É um traste. Não vale nada. É o próprio diabo. Sei muitas coisas sobre ele. Tenho pena do menino, mas o que posso fazer. Neste caso, ele está do lado da honra. Mas você não pode se acabar assim! Sem ofendê-la, considere-se com sorte por se livrar de um traste como ele!
Mais não disse. Esperou pacientemente que ela dissesse alguma coisa. Ouvia o barulho da chuva batendo no telhado e fustigando a janela.
De repente, como se voltasse de um longo sono, Deolinda mexeu-se e estendeu a mão direita em direção da colher e, com movimentos lentos, começou a comer. Andreza não a interrompeu. Percebeu que ela estava faminta. Conforme a sopa era ingerida, ela aumentava o ritmo da colher. Raspou com gosto o fundo do prato. Olhava fixamente para a panela.
-- Sirva-se. Eu também quero mais.
Deolinda não se mexeu. Então Andreza a serviu. E ela voltou a dar colheradas cheias, rápidas, enquanto com o dorso da mão esquerda limpava os lábios. Parecia um andarilho que há muitos dias não comia ou bebia.
Depois de limpar o segundo prato, ela sentiu sono e dobrou a cabeça sobre a mesa e dormiu por meia hora. Ao acordar, deu com Andreza sentada à sua frente, como estava antes.
Ambas ficaram por mais de meia hora conversando. Ao sair, Andreza deixou um bilhete numa folha amassada.
-- Ficarei esperando por você.
Já havia escurecido e a chuva dera uma pequena trégua. Mas as nuvens continuavam pesadas e baixas.
Parte IV
Dias depois, a população da cidade a viu na estação, sem trouxa de roupa, com um vestido sujo e amarrotado, com uns chinelos gastos. Embarcou sozinha, sem olhar para trás. Quem a conhecia, ficou espantada e, ao mesmo tempo, com medo de se aproximar.
Muito se falou sobre Deolinda, mas tudo não passou de invenções. As boas mulheres da cidade ocuparam-se por dias com a sua partida. Quase todas achavam que Deolinda endoidecera. Logo o assunto, entretanto, cansou as línguas e a cidade voltou a se ocupar com outras trivialidades.
De posse do bilhete que a desconhecida senhora deixara sobre a mesa, ela partiu para longe, em outro Estado, cegamente, disposta a tocar a vida e passar uma vassoura sobre o seu passado. Olhava para a frente. O passado, num átimo, se perdeu na memória. Do dia de sua partida na pequena estação, algo se apagou em sua mente. Nem mesmo do nome se lembrava.
Andreza era dona de um cabaré numa vila de garimpeiros no meio da grande floresta. Ali se encontravam todas as espécies. Todos possuídos pela febre do ouro. Em cada pessoa havia o brilho da cobiça. Durante o dia, eles se cansavam nas pressupostas minas, cavando e carregando terra misturada com cascalhos. De noite, bebiam e dançavam com as mulheres do cabaré.
Quando abria as portas do cabaré para mais uma boa noitada, Andreza deu de frente com Deolinda. A princípio, não a reconheceu. Estava irreconhecível: mais magra, suja, os ossos quase furavam a pele do rosto, os cabelos enrolados e emaranhados. Quase a expulsou.
-- O que deseja? Não dou esmola pra ninguém! – foi dizendo, mostrando-se carrancuda.
Não obteve resposta.
-- Também não dou abrigo. Dê o fora! Se quer pousada e comida, vá até o fim do casario. Lá, o pastor recebe as almas perdidas.
Sem dúvida: o que estava ali na sua frente era uma alma perdida, um peso morto, que a espiava sem piscar. Foi, então, que ela reconheceu Deolinda, lembrando-se de sua visita àquela cidade, quando arrepanhava mulheres para o seu negócio.
-- Ora, ora... Veja quem está aqui! – estendeu-lhe as mãos bem cuidadas, solícita e risonha. – Você parece mais um fantasma...
Puxou-a para si e a abraçou, empurrando-a porta adentro.
-- Venha: você precisa de um bom banho e boa comida.
No salão fracamente iluminado, mulheres bem vestidas exalando perfumes baratos esperavam por clientes. Um bolero sertanejo tocava na vitrola.
Assim, Deolinda virou Tomázia. E passou a morar num dos quartinhos no fundo do cabaré. Quando o quartinho era ocupado com cliente, ela dormia numa rede no lado de fora, perto de uma horta que ela mesmo cuidava. Naquele pedaço de terra preta sentia-se feliz. Era capaz de passar horas cavando e cuidando de tenras plantas. A cada mudinha que colocava na terra, ela mexia os lábios como se fosse uma oração. Todos os dias, ela visitava a horta e cuidava de cada mudinha como se fosse um filho tenro.
Logo se percebeu que Andreza não fez bom negócio ao recolhê-la. Tomázia conversava pouco e, quando falava, as palavras soavam com sentidos estúrdios. Desta forma, os possíveis clientes começaram a evitá-la. Só um garimpeiro surdo-mudo gostava de ficar com ela. Ambos, entretanto, nada entendiam um do outro. Depois de horas em espantoso silêncio, o surdo-mudo ia-se embora planando, absorto e feliz.
Andreza não sentia compaixão por ninguém. Estava no ramo para ganhar dinheiro. Sentiu-se, porém, penalizada com a situação. Se fosse outra, ela a mandaria embora rapidamente. Mas Tomázia se dedicava a todo serviço: faxina, cozinha, lavação de roupas e, sobretudo, quando ela não podia, colocava-a no caixa sob confiança irrestrita.
-- Olha a sujeira aqui! Quem vomitou neste canto? – berrava Andreza, furiosa. – Será que esses homens são animais selvagens? Tomázia, venha cá, limpe essa porcaria agora mesmo!
Lá ia Tomázia, com balde e vassoura, limpar a imundície. Não reclamava, cumpria a ordem cegamente. Por isso, em pouco tempo, tornou-se uma escrava obediente.
Na frente de todos, Andreza gabava-se da servidão dela:
-- É uma pepita de ouro, essa Tomázia! Nem sei o que seria de minha vida se, naquele dia, não tivesse parado naquela cidadezinha e, naquele bar, ter ouvido algo tão assustador como a sua história!
Foi, de fato, num bar que ouvira a história trágica de Deolinda. Vários homens conversavam entre si sobre o que acontecera. Andreza, curiosa, ouvira com atenção, fizera várias perguntas e, no dia seguinte, dirigiu-se à casa dela debaixo daquela chuva torrencial.
-- Muito mais do que uma pepita de ouro! – voltava a dizer, fumando desesperadamente e tossindo.
Uma boa escrava: nunca estava interessada em dinheiro, situação rara numa vila de garimpeiros. E não perturbava ninguém. Falava o necessário e, na maior parte das vezes, eram frases desconexas. Ela não queria nada, recusava até mesmo as gorjetas dos clientes. Quase não comia. Continuava magra e pálida.
As mulheres iam e vinham, algumas morriam de doenças bravas, outras eram levadas por homens apaixonados. Tomázia permanecia por ali, limpando, cozinhando, lavando roupa. Por vezes, cantarolava, a voz espremida, como o gemido de aves noturnas.
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