SANGUE VERDE - ROMANCE / DAVID GONÇALVES - TRECHO 2


Um garimpeiro, com mais de cinquenta anos, dizia com amargura alguns trechos de sua vida:

— Se eu fosse jovem e forte, por Deus, não me enterraria aqui. Faria de tudo para partir. Isso é uma draga, chupa todas as forças. É ilusão pura. Não ficaria aqui chafurdando na lama, com gosto de barro na boca. Não mais colocaria minha vida numas poucas pepitas de ouro.

— Velho de uma figa! Cale essa boca!

— Deixe ele falar. Pelo menos, sua alma se torna mais leve – ordenou Doca mirando as sombras das lamparinas dançando nas paredes.

— Essa conversa me dá nojo! – confessou outro garimpeiro.

— O que não dá nojo nessa vida?

O velho principiou novamente com sua voz cansada e alterada.

— Joguei minha vida fora. Queria a fortuna!

— Quem não a quer? Ninguém está por aqui por bonito. É o ouro! O resto não importa.

— Que ilusão! O que tenho hoje? Reumatismo, perebas e cansaço. Meus braços, que eram fortes, podiam até nocautear um boi, só com um soco, e hoje já não aguentam os trancos. Mas vocês, vejo por essa febre que está em cada olhar, jamais me ouvirão. Estão neste garimpo como urubus numa carniça. Sei lá por que estou falando nessas coisas...

— Não se tocam urubus de cima de uma carniça – disse Doca, enfarado. – Só quando não houver nenhum naco de carne podre.Mesmo depois de Serra Pelada ter virado um açude, um alagado, água jorrando como um rio, ainda tem gente que vai todo dia contemplar a grande lâmina d’água, ainda enfeitiçado, à espera do borbulho do ouro...

Voltou a enxugar o suor no rosto.

— Bem, pessoal, vou dar uns giros. Estou vertendo água. Alguém me acompanha?

Ninguém mostrou-se interessado. O calor os deixava prostrados, como sacos inúteis. Então saiu barraco afora. A rua torta estava enlameada. Garimpeiros, nas portas de seus barracos, trocavam conversa mole. 

Que noite tivera! Foi de arrasar. Gastara o pouco dinheiro com aquela mulher. Por isso, sentia-se novamente homem. E isso era tudo que podia sentir de bom. Caminhou sem rumo. De repente, alguém o interpelou no escuro. Era o estranho da noite anterior. O tal de Antonio Russo. Também caminhava absorto. Doca queria ficar só. Cumprimentou e saiu a passos largos, mas o outro o interpelou novamente. 

— Sente fogo sob os pés?

— Esse mormaço! 

— Pensei que fosse na casa de madame Teresa. Parece que se deu bem ontem. 

— Fiz o que pude.

— Aquela mulher é de revirar as ventas!

— Estou apressado. Quero estar só. 

E desapareceu no escuro. De fato estava atordoado. Aquela mulher fizera estragos em seus sentimentos. Chovera o dia todo e, recostado na rede, enquanto os demais no barraco jogavam baralho, ele ardia em desejos. 

Matildes, Matildes, Matildes!. Tinha bom corpo e voz macia. Os cabelos longos e pretos desciam-lhe sobre os ombros nus. Sem dúvida, caíra como mosca no mel. Estava se debatendo no melaço e, quanto mais se debatia, mais ficava preso. Queria a todo custo espantar a sua presença e seu cheiro adocicado, mas não conseguia. Ele não era menino bobo, que se engabelava por qualquer fêmea. Experiente, calejado pelo andar da vida, sabia livrar-se de rabo de saia. Não era tolo de amarrar o burro num único pau. 

Um luar esmaecido subia sobre a floresta.


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GARIMPO — terra rica de gente pobre...

Um pedaço no meio da Amazônia transformado em turbulento reduto de aventureiros.

Com as notícias de riqueza fácil, toda a espécie de gente acorria desordenada como um formigueiro desfeito. Vinha tentar a sorte. Cada forasteiro, sem nada nos bolsos, se mostrava mais ganancioso do que o outro.

Era uma massa de gente que não prestava, desbandeirada, sem pouso nem destino certo. Por toda parte, existia gente que não prestava, mas em menor proporção. Ali, a maioria não valia um níquel, numa ânsia de enriquecer de qualquer jeito. Na luta pela posse do ouro, a ambição cega atropelava. Homens cegos sedentos por ganhos rápidos.

A maioria vinha só, sem mulher e filhos. Para que levar a família no meio da floresta? Logo, entretanto, a fome por sexo falava mais alto. Não havia mulheres para todos e isso causava pânico. Os homens se tornavam nervosos e inquietos, como se os corpos ardessem em chamas. Então, bebiam. Por qualquer palavra desentendida, as brigas, seguidas de mortes, explodiam. O pequeno cemitério crescia como um organismo vivo.

Já se cogitava em fabricar caixões. Zeca Maranhão percebera a necessidade e, numa marcenaria improvisada, desenhava caixões grotescos e os construía com tábuas toscas. Mas os enterros, em sua grande parte, aconteciam em redes, que ninguém queria pagar as despesas do defunto.

O bom negócio, a princípio, se revelava desastroso. Zeca Maranhão esperava por dias melhores. De uma coisa tinha certeza: as mortes sucediam-se irremediavelmente. Quanto mais os homens sentiam necessidade de sexo, mais eles se tornavam insuportáveis e brigões.

Mulheres eram disputadas à força. A cada leva de mulheres que chegava no cabaré era motivo de ansiosas conversas e expectativas. Mesmo os que nada tinham e estavam roendo as unhas queriam entrar no cabaré para espiar as madames recém-chegadas. Em geral, mulheres maltratadas pela vida, com seios caídos e cinturas deformadas, deixando ver abertamente dobras de gordura e calombos de celulite. Bem vestidas, com maquiagem espessa, sob as luzes fracas e coloridas, elas se transformavam em princesas aos olhos dos garimpeiros. 

Sob o sol escaldante, os comentários circulavam pejados de angústias e desejos, e todos desejavam bamburrar, mesmo que fosse porção pequena de ouro, para que pudessem pagar àquelas princesas.

— Desta vez, só uma se salva... aquela morena alta, de quadris redondos, seios erguidos...

Outro rebatia:

— Pra mim, mano velho, qualquer uma serve. Quem não tem cão, caça com gato! Estou a matar cachorro a grito...

— Por que não usa o cinco contra um? — pilheriava o companheiro, sorrindo abertamente. — Pelo menos, você se livra de doenças.

— Ah, de boa consciência, quem aqui neste fim de mundo já não usou? Estou até com cabelos nas mãos!

E todos riam. Os desejos, entretanto, aumentavam, afloravam, e deixavam os homens irascíveis.

O Pastor achava-se dono daquela riqueza. Para entrar no formigueiro desordenado, cobrava das pessoas. Com isso, ele ganhava na entrada, na igreja, na venda dos produtos do armazém, na venda do ouro e na saída. Os devedores fugitivos eram perseguidos por caçadores de recompensas.

E a primeira coisa que o garimpeiro faz, quando acha uma boa pepita, é comprar uma arma e andar com ela na cintura, debaixo da camisa, desconfiado até da própria sombra. Depois do comércio do ouro, o de armas é o que mais prospera. Tio Nico, a cada três meses, aporta por lá com uma mala recheada de pistolas, todas da Fronteira, onde não há lei alguma e o tráfico corre solto. Para entrar no garimpo, Tio Nico dá polpudas comissões ao Pastor.

Ninguém está no garimpo para salvar o mundo. Todos desejam salvar a própria pele. 

Há os que chegam e ainda trazem bons preceitos. A miséria os empurrou para este tipo de trabalho. Mas, com os dias se arrastando de forma selvagem, tudo passa. Dentro de algum tempo, compreendem que a vida não vale nada. Pois o que vale o homem? Exatamente o que ele tem nos bolsos.

Levas de ambiciosos abandonavam suas terras distantes, reunindo apenas o indispensável para a viagem, e se dirigiam para o garimpo Boa Fortuna. Sem dinheiro para pagar o Pastor, eram despejados de volta, ou se arranchavam na ponta das ruelas, espalhando-se pelo formigueiro à procura de trabalho. Decepcionados, logo descobriam que o garimpo tinha donos, e um deles, sem dúvida, era o Pastor. Sem alternativas — os bolsos vazios, a fome rondando a cada dia, e a grande floresta como muralha, iam ficando, as ruelas cresciam, novos ranchos cobertos de buriti se ajuntavam. Viviam ao deus-dará, como podiam, com os seus cachorros magros e filhos carcomidos por vermes. 

Garimpo — terra rica de gente pobre.

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NO POVOADO DESAPRUMADO havia uma meia-água tosca, com uma tabuleta pendente da porta, onde se lia “A FLUTARIA DU GARIMPU”, escrita a piche, as letras desengonçadas, fora do prumo. Mais pareciam bonecos desenhados por crianças.
Havia chegado de barco uma carga de frutas, e o dono, um baiano, sabia que, naquele dia, não teria sossego. Frutas eram iguarias. No dia a dia, feijão, arroz, farofa e carne seca. Uma vez, a cada quinze dias, o barco trazia caixas de madeira com frutas – abacaxis, mangas, laranjas, e tubérculos.

— Tem abacaxi? — perguntou Doca, exausto, sujo de terra, no final da tarde, quando o sol se escondia na floresta feito uma bola de fogo.

Zé do Coco picava fumo despreocupadamente, só de bermuda, nu da cintura para cima. Distraído, esmigalhava o fumo de corda com um canivete gasto de cabo de osso, lambendo a palha de milho para enrolar o cigarro.

— Abacaxi, veio desta vez? — voltou a perguntar Doca. – Amanheci com as lombrigas atiçadas!

Sonhara à noite com balaios lotados de abacaxis amarelos, cheirosos e suculentos. Revirava na rede. 

— Lá vem o barco! – trabalhando na mina, ficava de olhos no rio, lembrando do sonho da noite. – Será que trouxe abacaxi?

Era uma frutaria improvisada. Havia cachos de bananas pendurados, envolvidos por telas de nylon, para afastar os pássaros e os macacos famintos. Eram cachos raquíticos cultivados por ribeirinhos, ao longo do rio, ao deus--dará. Muitas vezes, apodreciam antes de madurar. Os ribeirinhos, antes de granar, vendiam, gananciosos. Protegidos por telas, os pássaros não conseguiam bicar, mas os macacos... Atacavam em bandos. Eram rápidos e ardilosos.

— Tão aí, mininu!

Em cima de uma banca de tábua suspensa por estaca, que também abrigava carás e mandioca já passados, os abacaxis espalhados, com parte da polpa apodrecida. O cheiro adocicado atiçava as abelhas, atiçando também a gula de Doca.

— Tão aí, mininu, pode pegá, é deis real cada.

Doca se assustou. 

— Cada um?

— Sim, mininu. Tá tudo muito caro. Vem di longi, ocê sabi. Pur metro, vai dobrano o preçu. Nu garimpu, custa o zóio da cara!

Queria cinco abacaxis. Mas, no preço que estava, contentou-se com dois. Depois da janta, descascaria um.

— Faz um desconto, seu Zé. Aí levo mais um.

— Nun tem jeito, não. Tudo mundo qué ganhá o seu. Quandu chega nu garimpu, tá o zóio da cara!

Uma velha desdentada, acompanhada de uma cabocla nova e de um menino sardento, que coçava constantemente a cabeça desalojando os piolhos que disputavam o sangue aguado pela maleita e pelas lombrigas, queria comprar fiado, pagar no fim do mês. Zé do Coco fechou os cenhos, alterou a voz:

— Minha sinhora! Tenhu um loti de cabecinha chata, pançudu e lubriguentu pra criá, i a sinhora vem pedí fiadu. Pru inferno! Aqui, nu garimpu, só nu dinhêro! Nun adianta ficá cum essa cara de cachorro caídu de mudança, não. Quem tem coração moli nun vévi pur essas bandas...

Doca se apiedou.

— Que gente pobre... Coitados!

— Coitadu é fio de rato que nasci peladu! Quem nun tem dinhêro qui nun si estabeleça! A lei da vida. Si eu for ter pena dessa genti, tô fudido e mal pagu. Vá pedi as coisa pru Pastor... Nun vai recebê nadinha! É um mão di vaca. 

Sempre o Pastor, a mesma conversa.

— Vê si o home, essi tar de Pastor, vai pegá nu cabu du machadu pra rachá lenha, nem vai amassá barru, muitu meno trepá na iscada pra tirá goteira du ranchu. Nun vai pegá nu cabu da inxada pra plantá mantimenu, nem vai cavá o chão pra tirá ouro. O home manda e dismanda nesti garimpu. Aqui, o pobre se ferra e pur um nadinha é encontradu de boca pru chão, a boca cheia de furmiga. Sabi, seu moçu, eu só queru vendê minhas frutinha. Queru ficá rico, não. Mais nem pobri. Remediadu, é mio. Os dedo da mão é iguá? Nun é. Tudo diferenti. Si tudo mundu fosse rico, morria tudo de sujeira. Sabe pur quê? Quem ia lavá rôpa? Quem ia cavucá o barru pra achá ouro? Quem ia vendê essas fruta? O que mai aborreci e não aceitu, e mi fais perdê o sonu, é qui os rico nun gosta de pagá a genti direito. Eles pode comprá tudo, inté a justiça. Aí, que palavrão! Pur aqui, justiça é na basi do revólve, na bala de açu. Nun adianta gritá, os rico, esse tar de Pastor, pode botá quarqué um fora du garimpu, ou intão mandá pro ôtro mundu. Já viu pobri tê razão?

Anoitecia. Um vento forte, mas morno, vindo da mata próxima, passou repentinamente, agitando os cabelos de Doca. O menino sardento e empiolhado, enquanto Zé do Coco conversava, havia surrupiado várias frutas e, sorrateiro, saíra correndo. Doca o percebera, mas fizera de conta que não havia visto. Mais adiante, o menino se reuniu à mãe e seguiam pela rua tortuosa.


Zé do Coco cuspiu violentamente e passou o chinelo enorme em cima da cusparada. No brilho de seus olhos havia raiva e decepção.

— O sinhô veio da onde? Nun parece cabra encruadu cumo essa leva de genti de vesti esfarramada acenanu ao vento...

Para disfarçar, Doca fez que não ouviu, jogando duas notas de dez reais sobre o balcão improvisado.

— Vou levar dois, seu Zé. Outro dia, levo mais. Quando vem outra carga? Só de quinze dias?

— Tá certu! Si nun qué falá, nun fale. Possu nun sê detetivi, mais nunca saio da pista. Cumo qui si diz, quem isquenta a cabeça é palitu di fósfo! Aprendi a respeitá, seu moçu. Pur aqui, o passadu é sempre feio. Em cada rostu, só a cobiça. Tudu mundu qué ficá ricu, bamburrá. A vida, pur aqui, inté pareci venda de bilheti de loteria. Sempri o memo consêio: “seu dia chegará!”. Mais, inté agora, só pôca genti viu a grandi sorti. Mais, prus pobri, chega nunca!

— Há como sair daqui com o ouro, seu Zé?

— Nun mi fale nistu. Daqui, ninguém sai cum o ouro. O Pastor nun deixa. A mina é dele. Já vi uma purção querê saí, e acabaro na valeta ou no riu, banqueti das piranha. Ocê já ouviu falá do Djalmão? O negão mata sem piscá os zóios! Notro dia memo, arrancô as pepita de ouro do rabu de um garimpêro. O pião tinha escondido o ouro no cu. Puis o Djalmão rancô as pepita lá di dentro. Tava cheio de merda. Qui nojeira! Mais nun perdeu o ouro. Aqui, é assim qui funciona. 

Anoitecera. O lampião clareava frouxamente. Muriçocas atacavam famintas. Fregueses chegavam. Zé do Coco abandonou a conversa e foi atendê-los. Doca saiu em direção do rancho, carregando os abacaxis.

Mais adiante, avistou Matildes, que entrara na loja “Butike de ouro”. Ela olhava as bugigangas, enquanto o negociante atendia os numerosos fregueses, na maioria prostitutas e garimpeiros gastadores. O mulherio comprava braceletes, brincos, sapatos e bolsas. Pelo balcão engendrado de caixotes de pinho viam-se cortes de tecido e bermudas, saias, sutiãs, calcinhas por preços absurdos. Os olhos de Doca apalparam avidamente o corpo da prostituta, de cima para baixo, de baixo para cima, feito olhar de bisturi. No meio da rua escura, quedou-se cheio de desejo, segurando um abacaxi em cada mão.

— Para casa! – ordenou a si mesmo, contendo-se. – Sai, satanás! 

Se fizesse como os outros garimpeiros, que gastavam tudo com mulheres, jamais sairia daquele inferno com os bolsos forrados. Naquele lugar, o mundo viera parar com todas as tentações, toda a sua hipocrisia, as suas grandezas e misérias. Ali, havia dinheiro, miséria e imundície a granel. O que aquelas mulheres queriam? Sapatos e vestidos bonitos, brincos, colares, bebidas que espumavam.

— Depois de três trepadas, já não é uma aventura, mas um caso – ruminou, apressando os passos.

No meio do caminho, um grupo de garimpeiros conversava alto:

— Hoje, o Djalmão teve serviço!

— Não diga! O que ele fez?

— O de sempre! Esculhambou três cabras. Estavam escondendo ouro. Ouvi os urros de um. Aquilo deve ter ficado com a bunda sem conserto..
.
Doca apressou mais os passos. Cachorros vadios perseguiam cadelas, num cortejo cego. Sobre a mata, a lua começava a pratear.

TRECHO 2 DO ROMANCE "SANGUE VERDE" DE DAVID GONÇALVES ( Pg.12 a 18)

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