ALGO RÓI DENTRO DO PEITO - CONTO / DAVID GONÇALVES - PARTE FINAL


Parte V

Vinte anos se passaram. Para ela, entretanto, o tempo não andara. Estava arcada, cabelos ralos, brancos e encardidos. Na verdade, desde o acontecido, nunca mais se olhara no espelho. No menino, jamais tocou no assunto.

O progresso do garimpo se findara. Restava do cabaré apenas duas ou três mulheres emperebadas com varizes. Os homens que permaneceram na vila estavam velhos e fracos e muitos deles passavam fome ou estavam condenados. Andreza ganhara muito dinheiro, mas estava velha também. Não tinha mais coragem para ir atrás de outro garimpo.

-- Bananeira que já deu cacho... É daqui para o cemitério... – dizia, enfarada, olhando a decadência do casario.

Tomázia quase nem comia. Quedava-se alheia a tudo. E pouco dormia. O garimpeiro surdo-mudo morrera há anos numa briga. Um pastor de uma nova igreja quis levá-la, mas Andreza se enfureceu. Ora, só faltava surrupiar-lhe quem cuidava de tudo! O pastor se esquivou e nunca mais apareceu.

Certo dia, quando o sol se punha amarelo sobre o casario decadente, subiu rua acima um jovem bem trajado. Parava de casa em casa e perguntava por uma mulher chamada Deolinda. Queria descobrir o paradeiro de sua mãe, que desde pequeno não a via, e sequer se lembrava de suas feições. Não teria sossego na vida enquanto não a encontrasse. Parava nas casas e conversava pacientemente, como se estivesse garimpando ouro no meio do cascalho.

Bateu à porta do cabaré decaído.

-- Tem um moço aí fora... – disse uma das mulheres que ainda faziam ponto. – Ele quer por quer conversar com a madame.

Andreza, arrastando as pernas gordas, foi até à porta:

-- O que quer?

O moço tirou o chapéu e, de olhos baixos, foi dizendo timidamente:

-- Estou à procura de uma mulher, minha mãe, desaparecida...

E tirou do bolso uma fotografia amarelada.

-- A senhora pode me informar se já viu esta mulher?

Andreza olhou a fotografia, depois o moço, reconheceu Deolinda quando jovem, voltou a examinar a foto atentamente.

-- Sabe, moço, muita gente passa por um garimpo. Mas não me lembro de ter visto esta criatura...

Os olhos do moço se umedeceram. Neste momento, passou por eles Tomázia – arcada, muito magra, cabelos brancos e encardidos, despenteada, como um fantasma. Empunhava uma vassoura e varria a calçada de pedras. Parecia mais velha do que nunca.

-- Bem, senhora, eu não descansarei enquanto não encontrá-la... É um vazio muito grande que me rói...   

-- Sinceramente, moço, não sei como ajudá-lo...

-- De qualquer forma, agradeço. Até mais ver!

E lá se foi o moço estranho rua abaixo: desolado, triste, numa procura incansável, com um bicho roendo o peito.

Naquela noite, Tomázia morreu. Sem barulho, quieta, alheia a tudo, como vivera grande parte de sua vida. O caixão de madeirame bruto pesava mais do que o seu corpo enrijecido. Era um fiapo parecido com um barbante.

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