Parte I
Chovia naquela tarde e fazia frio. Até os pássaros estavam escondidos. Os répteis enfiaram-se nos buracos e ocos de paus. As nuvens pesadas comprimiam o ar sobre as árvores, as pastagens e as plantações.
Do jipe, desceram três pessoas no terreiro do sítio. Um, o mais velho, tinha barba e cavanhaque e usava chapéu preto. Os outros dois eram moços e usavam fardas da polícia local.
Bateram palmas em frente da varanda. Da porta da cozinha, saiu uma mulher. Tinha olhares assustados e parecia que sentia muito frio, a despeito do casaco de malha. Achegou-se ao pé direito da pequena balaustrada que cercava a varanda. O mais velho, sentindo os respingos da chuva gelada, colocou-se a sua frente. Fez um enorme esforço para falar. Parecia que a língua estava presa.
-- Sabe, dona, sou o oficial de justiça. Tenho que cumprir um mandato judicial. Viemos buscar o menino...
O rosto da mulher tremeu e perdeu a cor. Parecia defunta. A pele envelheceu como toque de maldição.
-- Traga o menino.
Ela não se mexeu. Estava com os pés atados. Chumbos os prendiam ao assoalho.
-- Não queremos usar a força – e olhou para os dois jovens soldados. – Sabe, dona, estamos cumprindo a lei.
Com muito custo, ela rolou as palavras na boca.
-- Sim, eu sei. Vou arrumar suas roupas... – a voz saíra engasgada, como pedra rolando no despenhadeiro, rouca, quieta e funda.
-- Está chovendo muito, dona. Podemos entrar na varanda?
-- Oh, por favor...
E entrou na casa. Meia hora se passou. A chuva não dava tréguas. O frio enregelava.
Os jovens soldados conversavam animadamente, falavam de uma festa que acontecera em outra gleba. Uma festa de casamento. No final, o noivo recém-casado, bêbado, ao invés de ir dormir com a esposa, ainda vestida de noiva, montara a cavalo e rumara para a casa de seus pais.
-- A noiva ficou uma cascavel! Queria separar-se...
-- Ora, mas também!
-- No outro dia, de tarde, o pai dele o trouxe de volta, já curado, depois de tomar um rol de chás... Estava envergonhado e assustado.
-- Ela o aceitou?
-- Havia outro jeito?
Surgiu na porta a mulher. Segurava o filho pequeno de apenas um ano e dois meses. Tinha os olhos vermelhos. O rosto cadavérico acentuava seus olhos descoloridos que miravam o vazio, o nada.
-- Não tenha medo, Cirilo, eles não farão mal algum. Deus te proteja... – a cada palavra mordia os lábios ferozmente.
-- Venha, bom menino, não tenha medo – o oficial de justiça quis abraçá-lo, mas o menino se encolheu, chorando, o medo estampado nas faces.
Foi arrastado até o colo do oficial, que o carregou até o jipe. Voltando-se duas ou três vezes, ia dizendo:
-- Não me julgue mal, dona. Eu cumpro a lei. Não gosto de fazer este tipo de serviço... É minha obrigação...
E lá se foi o jipe jogando barro vermelho em espiral, caminho acima, logo coberto por uma espessa chuva branca.
Encostada no pé direito da varanda, a pele amarela esfarinhando, olhos vazios, ficou a jovem senhora, absolutamente sem vida. Tinha nas mãos duas lembranças da criança: o paninho de algodão que o menino cheirava antes de dormir e a chupeta seca.
Parte II
Chamava-se Deolinda e procedera-se mal. Por autoridade de pais severos, casara-se com o filho do fazendeiro Leôncio. Mas não gostava dele. Desde pequena, cultivava sentimentos fundos e secretos por um colono trabalhador, mas pobre. Para os pais, o casamento dela era uma mina de ouro, o caminho da fortuna e da bonança. Para ela, o caminho do inferno. Godofredo, o marido imposto, conhecido arruaceiro, cultivava maus hábitos na cidadezinha. Frequentava festas e meretrícios, por qualquer palha criava brigas feias, de socos e tiros. Quando chegava em casa, mostrava-se furioso. E tinha um costume: remexia a orelha esquerda, para cima e para baixo, como de propósito, mas era inconsciente. Isto a deixava com nojo. Quantas vezes não fora obrigada a fazer sexo sentindo o bafo azedo da cachaça!
Enquanto isso, o colono que ela amara, desiludido, mudara-se da região e, conforme se versava, casara-se com uma qualquer, pois um homem tinha que ter mulher para apaziguar os ânimos. Quando se chega do trabalho, exausto, o homem deve encontrar a casa varrida, a mesa posta e a cama cheirosa. Afinal, é a recompensa por um dia suado.
O casamento por si só não é boa coisa: traz deveres, cerceia a liberdade, exige boa dose de compreensão. Mas se existe amor, os conflitos são devorados um a um; mas se o amor fugiu pela janela ou, mesmo, nunca esteve presente, como no caso de Deolinda, os dias se arrastam tenebrosos.
Havia outro empecilho. Godofredo não era fértil. Queria um herdeiro, mas não podia. Isto o deixava furioso. Jogava as culpas sobre ela. Era conhecido como garanhão, mas não fecundava.
-- Sua cadela! – vociferava. – você é árvore sem frutos! Que bela esposa arrumei!
Ela se amuava. Revidar era como acender o estopim. Colocava a mesa para o jantar, quase meia-noite. O bafo azedo da cachaça inundava a casa. Até os gatos fugiam da taipa do fogão, ressabiados e enojados. Deolinda aguentava as injúrias, os sentimentos roendo como soda. Era demais, não tinha amor, o respeito tornara-se algo inacessível...
Que culpa tinha ela se ele não podia ter filhos? A princípio, ela achava que era infértil, uma figueira inútil. Depois de vários exames, comprovara que a situação invertera. Godofredo recebeu a notícia como uma bomba. A partir desse dia, tornou-se mais agressivo. Considerado o rei do terreiro por onde andava, de repente se vira um garnizé envelhecido, sem utilidade. Afundou-se mais na bebida, desorientado, e envolvia-se com mais freqüência em brigas infundadas.
Deolinda, então, concebeu algo em sua mente. Resolveu separar-se. Mas ele não aceitou. Para que viver sem amor e sem filhos? Sem amor, vive-se, mas sem filhos? Para uma mulher, isto é impossível.
Três anos de casamento pareciam uma eternidade. Os dias se arrastavam. Não havia luz alguma no fim do túnel. Sobravam agressões. A cada dia, o drama inchava. Até que ponto teria forças para arrastar aquela vida miserável? Não era uma figueira seca.
-- Eu vou lhe dar um filho, sim! Ouviu bem?! Não morrerei sem um herdeiro! Prepare-se para o que vier!
De repente, começou a arrumar-se. Ainda era bela. A juventude não murchara. Tinha olhos grandes, negros, maçãs do rosto salientes e lábios carnudos. Enquanto o marido rodava os meretrícios em suas conhecidas peripécias, ela jogou o véu do casamento pela janela e se pôs a passear pela cidade. Em poucos dias, arrumara um incauto cavalheiro e o romance se teceu.
História descoberta, Godofredo – marido ofendido e violento – disparou dois tiros no amante, que se estrebuchou como porco na calçada. Lavara a honra em público. Nem cadeia pegou.
Deu uma surra em Deolinda, também em público e a arrastou para dentro de casa, severo, com a seguinte ordem:
-- De hoje adiante, você não pisará o chão fora desta casa. Eu a matarei! Não sou de repetir a mesma cantilena!
Mas Deolinda, semanas depois, começou a sentir-se enjoada, alguns desmaios, dores de cabeça. Enfim, estava grávida. Quando ofendida, rebatia:
-- Queria um filho! Pois terá um! Eu não sou uma figueira seca. Daqui para diante, não me trate desse modo!
Mas, na cidade, conversas circulavam. Muitos acreditavam que o filho de Godofredo, o garanhão, era do amante. Havia chacotas, piadas indiscretas, risinhos abafados. Para Godofredo, era humilhante. Vingara a sua honra matando o amante da esposa. Matá-la seria imperdoável aos olhos da comunidade. Então, teve uma ideia: esperaria o filho nascer, infernizaria a vida dela, até que ela abandonasse o lar e, em seguida, tomaria a guarda da criança, conforme as leis.
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