Poe, o inventor da modernidade
Autor: Edgar Allan Poe - Tradução: Guilherme da Silva Braga - Organização: Guilherme da Silva Braga

Ao escrever recentemente sobre a modernidade de Baudelaire — “Por que Baudelaire é moderno?” —, dei como uma das respostas seu contato precoce com a obra de Poe. A razão fica evidente se se lembra da conhecida taxonomia criativa de Ezra Pound: os artistas se dividem em inventores (que criam novas obras & novas formas de expressão ou revolucionam as antigas), mestres (que utilizam da maneira mais potente as inovações dos inventores) e diluidores (que diluem essas inovações). Poe foi um inventor por excelência. Em consequência, foi um dos precursores de todos os modernismos.

Poe inventou, em primeiro lugar, a poesia moderna, não quanto à sua sintaxe, mas quanto à sua concepção. Dito de outro modo: ele tirou de cena qualquer resquício do eu lírico romântico, ao mesmo tempo “inspirado” e “sincero” (e “sincero” porque “inspirado” — pela “verdade profunda” de sua “alma”, de que a poesia, aliás, seria a porta exclusiva), e pôs em seu lugar o eu lírico moderno, ao mesmo tempo lúcido e desiludido (e lúcido porque desiludido: des-ilusão é o contrário de ilusão). Em um dos textos fundadores da modernidade, “The philosophy of composition” [“A filosofia da composição” (1846)], Poe descreve a construção do poema “The raven” [“O corvo”]. Em si já seria inovador, além de surpreendente. Muito mais surpreendente (além de inovador) foi o método de sua construção. Ou seja, o fato de que o poema foi construído, e não simplesmente escrito. Em resumo, Poe descreve como começou o poema pelo final, para conduzir e condizer a cena convergentemente até ele, e como começou a realização desse final pela escolha de um som, o ô fechado, por ele considerado, entre outras coisas, o mais “escuro”, o que então o levaria à palavra cujo sentido melhor o traduzisse, o ominoso nevermore (“nunca mais”). Tudo o mais que compõe o poema derivou destas duas escolhas iniciais (na verdade, finais, pois o poema deveria terminar/culminar em tal palavra), como uma cebola construída, camada a camada, desde o centro.

A “mágica” da “inspiração” romântica estava morta. A poesia moderna seria construtivista ou não seria (mesmo os anticonstrutivistas iriam ser inevitavelmente referidos a este termo e a esta condição).

Além do lirismo construtivista moderno, Poe também inventou dois dos gêneros dominantes da prosa contemporânea: a literatura policial e a moderna literatura de horror.

Arthur Conan Doyle e seu Sherlock Holmes, Georges Simenon e seu Jules Maigret, Agatha Christie e seu Hercule Poirot, para registrar apenas os mais famosos descendentes de Poe, não existiriam sem seu Arsène Lupin de “The Murders in the Rue Morgue” [“Os Assassinatos da Rua Morgue” (1841)] — aliás modernissimamente baseados em uma série de reportagens policiais.

Assim como a literatura policial, a moderna literatura de horror (apesar de alguns praticantes ocasionais do final do século XVIII e da primeira metade do XIX, e de fábulas medievais como a do Gólem de Praga) é igualmente uma criação de Poe — Bram Stoker, por exemplo, só publicaria seu Drácula em 1897, meio século depois dele. Esse gênero, que encontraria dois de seus maiores praticantes em H.P. Lovecraft (discípulo assumido de Poe) e em Stephen King (idem), caracteriza-se pelo protagonismo do medo em si, daí seu viés psicológico ou “metafísico”. Não se trata mais, como nas fábulas medievais coligidas pelos irmãos Grimm, de haver um gigante assustador no fim do pé de feijão — mas sim do medo de que haja ou possa haver algo assustador no fim do corredor, no fundo do mar ou em qualquer lugar, ganhar suficiência e se tornar ele próprio, o medo, o monstro maior.

Se, para voltar a Ezra Pound, os artistas são “as antenas da raça”, Poe, na metade do século XIX, pressentiu o terror por vir no século seguinte. Kafka também, de alguma forma, descende de Poe.

Todos os principais contos desse novo terror moderno psicometafísico ou coisa parecida de Edgar Allan Poe (“O gato preto”, “O barril de Amontillado”, “O baile da morte vermelha”, “O retrato oval”, “O demônio da obstinação”, “Descida ao Maelström” e, naturalmente, a obra seminal do gênero, “A queda da casa de Usher”), em tradução direta, estão agora ao alcance da mão — como a causa do medo jamais estará novamente.

Luis Dolhnikoff, editor
Fonte:https://hedra.com.br/blog/poe-o-inventor-da-modernidade

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