Heresias à mesa - crônica - Donald Malschitzky


Uns seis ou sete falando alto, petiscos na mesa, cerveja, brincadeiras e o churrasqueiro ali, cuidando com esmero de um pedaço especial de carne, de boa espessura. Suculenta, no ponto certo, será a rainha da festa. Um dos convidados, metido – por que sempre tem um metido numa festa? – enfia um garfo bem no meio naquele pedaço especial e, com a faca, faz um vê na carne. Põe o pedaço na boca, sai mastigando, com o sumo a escorrer pelo canto da boca, passa as costas da mão na boca e solta uma risada escandalosa. Outra convidada se escandalizou:“Ui, como você pode comer carne tão crua? Quero uma picanha bem, bem passada”. Difícil saber o que é pior.

O cheiro do caldo enche o salão e provoca salivações. As postas de peixe, mergulhadas há 15 minutos, chegam àquele ponto que todo cozinheiro almeja: macias o suficiente para soltarem as espinhas com facilidade, mas rígidas para que não virem papas. Hora de servir. O primeiro que se serve mete a colher na panela e comete o maior dos sacrilégios: mexe tudo com vontade. Vira polenta de peixe, com as espinhas misturadas.

A origem da palavra “heresia” é religiosa, mas também serve para definir deturpações em filosofias, sistemas políticos etc. Deve caber para os autores dessas e outras proezas, afinal, existe algo mais sagrado do que uma refeição?

Ao redor do antigo Mercado Público, em Joinville, havia um grupo de moradores de rua, que por ali ficavam, recebiam uns centavos, cabeças de peixes e até algum pescado inteiro. Cozinhando um caldo numa lata de biscoitos, um deles resolveu experimentar um pedaço que boiava. Foi pegar com a mão. Outro, ao lado, indignado, não teve dúvida: empurrou a mão do guloso para dentro do caldo. “Mão Pelada” ainda frequentou o local por alguns anos.

Gosto muito dele,mas, quando vai tomar vinho tinto, finjo que não o conheço. Primeiro, gela o vinho até mais não poder, depois, coloca umas quatro colheres de açúcar no cálice. Pelo menos não usa copo Cica.

Falei em heresia: a Inquisição queimava vivos muitos dos que considerava hereges, e não era muito difícil que os malucos definissem alguém assim. Solução radical e abominável, mas alguém pode ajudar e sugerir o que fazer com esses hereges modernos antes que cantem música cornoneja na entrada da noiva na igreja?

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