Exercício de interpretação com crônica - queroaprenderportugues.com.br


                             Resposta tardia a Clarice Lispector

No dia 13 de dezembro de 1969, Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil uma crônica que terminava com um pequeno tópico, a que chamou Uma Pergunta. São apenas duas frases: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la? Que é que estou exatamente querendo saber?" Relendo as crônicas de Clarice, outro dia, esbarrei com essa pergunta. E tive, por instantes, a sensação de que era dirigida a mim. Sei que isso é um exagero, mas a verdade é que senti o que senti, então o que posso fazer? E resolvi, 30 anos depois, tentar responder à maldita pergunta que ela me deixou.
Volto à pergunta: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, quando estamos vivendo: quando nos entregamos furiosos à ação, ou quando nos poupamos dela? Mas o mais importante está, talvez, na segunda parte da pergunta. "Que é que estou exatamente querendo saber?" Tenho a impressão de que, nessa segunda pergunta, sem que a escritora soubesse disso, já estava a resposta à primeira. Quantas vezes nos afogamos em perguntas inúteis, que só nos destroem em fogo brando?
Há dois dias, vivi um pequeno episódio que, só agora percebo, evoca a pergunta deixada por Clarice. Um simpático jornalista da TV me procurou para me convidar para a gravação de um programa, em que eu deveria debater um certo tema literário, com uma eminente doutora da universidade. Era um convite honroso e tratei de desmarcar compromissos de agenda para atendê-lo. Mas, assim que disse sim, uma pressão sem nome passou a me oprimir. O jornalista era gentil, a professora era eminente, o convite era generoso — mas e eu? E cheguei à pergunta de Clarice: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la?" Em outras palavras, que cabiam em meu pequeno caso: era ir, ou não ir?
Ainda me debatia na dúvida quando meu amigo Wilson Bueno me telefonou e, inocente, recordou uma pequena história relatada por Guimarães Rosa. É mais ou menos assim. Caminhando pela Praça XV, um homem é avisado por alguém que deve retornar urgente a Niterói, porque sua casa está incendiando e sua mulher corre risco de vida. Sem pensar, o infeliz se joga na Baía de Guanabara e começa a nadar. Está no meio do caminho quando se dá conta: vive num apartamento, não mora em Niterói e não é casado. Tomado por outro, sem pensar, ele aceitou o papel que o gentil desconhecido lhe dera e, ato contínuo, o interpretou.
Sem saber disso, meu bom Bueno me fez ver que eu não podia aceitar o convite do jornalista de TV. Foi muita gentileza dele, e lhe sou muito grato por isso, mas houve ali um erro de pessoa. Não, não sou eu a pessoa adequada para cumprir o papel de debatedor com a respeitável professora. Estamos, ela e eu, em mundos diferentes, usamos línguas diferentes e, mesmo achando que falaríamos da mesma coisa, estaríamos falando de coisas diferentes. Seria apenas uma mentira gentil.
Nesse meu caso particular, aceitar o convite seria fazer de mim algo que não sou; e não aceitar, como preferi fazer, foi uma maneira de me preservar, de saber contemplar o mundo e esperar o momento oportuno. Pois nem tudo o que é bom, e o convite era muito bom, é oportuno.
Mas, outras vezes, tudo de que precisamos é fazer. Lembro-me aqui de um sonho impressionante que tive anos atrás. Eu, desesperado, me perguntava: "Por que nada acontece?" E uma voz espantosa, dessas que ecoam nos filmes bíblicos de Hollywood, me respondeu: "Nada acontece porque não acontecem as coisas que acontecem para que as coisas aconteçam." Sei que a frase foi essa porque, assustado, acordei no meio da noite e a anotei na margem de uma revista. É uma frase tortuosa, e me espanta que, dormindo, eu tenha podido concebê-la. O inconsciente é mesmo um bicho autônomo, que age sobre nós, suas pobres vítimas.
Trinta anos depois, Clarice, o que eu queria te dizer é: a primeira pergunta é falsa, e a resposta está na segunda. "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la ?", você perguntou. A resposta é: "Que é que estou exatamente querendo saber?" Porque, melhor que perguntar, é viver, ainda que seja à beira de um lago contemplando em silêncio a água imóvel.

José Castello. O Estado de S. Paulo, 19/5/98.

*1- Este texto é escrito a partir de outro. Quem é o autor do texto de origem, quando e onde foi publicado e por que deflagrou este segundo texto, que você acabou de ler?
*2- Por que o autor chama de "maldita" a pergunta que o moveu a escrever o seu texto?
*3- Transcreva o trecho do texto em que o jornalista "traduz" para as palavras dele as perguntas da escritora e, assim, lança o assunto de sua crônica.
*4- O terceiro e o quarto parágrafos do texto são descritivos, narrativos ou dissertativos? Que função possuem na estruturação predominantemente dissertativa da crônica?
*5- Que relação há entre o penúltimo parágrafo da crônica e os dois mencionados na questão anterior?
*6- Na sua opinião, o autor acha que se deve entregar à ação ou evitá-la? Explique.
*7- Que trecho melhor sintetiza o pensamento do autor sobre as perguntas que o levaram a produzir o seu texto?
*8- Dê uma razão pela qual o texto lido pode ser chamado de crônica.
*9- Este texto é ou não é uma carta? Explique.
*10- Como denominamos a técnica aqui presente de escrever um texto a partir de outro, já escrito anteriormente?

Gabarito
1. O texto de origem é de autoria de Clarice Lispector e foi publicado no dia 13 de dezembro de 1969, no Jornal do Brasil. Ele deflagrou o segundo texto devido às duas frases que o finalizavam: "Gastar a vida é usá-la ou não usá-la? Que é que estou exatamente querendo saber?"

2. Esta palavra deve-se ao fato de se tratar de uma pergunta difícil de responder, mas ao mesmo tempo muito provocadora, já que José Castello sente que ela foi feita para ele e, então, tem necessidade de respondê-la, mesmo trinta anos depois de ter sido formulada.

3- O trecho é: Em outa palavras, quando estamos vivendo:quando nos entregamos furiosos à ação, ou quando nos poupamos dela?
 Mas o mais importante está, talvez, na segunda parte da pergunta. 'Que é que estou exatamente querendo saber?' Tenho a impressão de que, nessa segunda pergunta, sem que a escritora soubesse disso, já estava a resposta à primeira. 
Quantas vezes nos afogamos em perguntas inúteis, que só nos destroem em fogo brando?"

4. Trata-se de dois parágrafos narrativos, com a função de relatar episódios que auxiliam o desenvolvimento do tema da crônica.

5. O penúltimo parágrafo da crônica também é narrativo, pois nele o autor relata um sonho. Trata-se, portanto, de uma relação de semelhança.

6. Na opinião do autor, em algumas ocasiões é necessário agir mas, em outras, como na que relata em sua crônica, a opção mais acertada é se preservar e esperar o momento oportuno.

7. Trata-se do trecho que finaliza a crônica: "(...) melhor que perguntar, é viver, ainda que seja à beira de um lago contemplando em silêncio a água imóvel".

8. Embora se trate de um texto jornalístico, que relata episódios cotidianos, ele faz uma reflexão profunda e atemporal sobre o sentido da vida humana.

9. Embora desde o título a crônica pareça uma carta, ela na verdade se utiliza desse tipo de texto como recurso de estruturação.

10. Esta técnica chama-se intertextualidade.

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