NAVEGANTE - CONTO / JOSÉ FERNANDES


Quando tiveram de sacrificar o Navegante, Sontônio Bello ficou desconsolado. Era um boi de estimação, o par de Navio. Bastava declinar-lhes os nomes para eles se emparelharem, onde estivessem. Nenhum veterinário conseguira um diagnóstico exato sobre aquela doença. Navegante emagrecia a olhos vistos. A disenteria não amainava. Nenhum remédio conhecido pela ciência médica, alopática ou homeopática, surtia efeito. Nem mesmo chás de mané-magro, carqueja ou boldo, infalíveis em outras ocasiões. Sequer os poderes do sagrado: as benzeduras de Maria Coelha e suas rezas bravas, sempre acompanhadas de cura infalível, eram o mesmo que água com açúcar. O animal piorava a cada dia, apesar da vontade de viver que se via em seus olhos e na disposição de manter-se em pé. Para não perdê-lo totalmente, Sontônio seguiu o conselho de Salustiano, seu tio: abatê-lo o quanto antes.

À abertura da buchada, a resposta para o seu mal: cinquenta pregos dezoito por trinta e cem, dezoito por quarenta. Sontônio ficou indignado; mas deixou tudo nas mãos de Deus. O autor era conhecido de todos: Jodisão. Não havia dúvidas: a demanda pelo desvio do córrego de suas terras a tudo explicava; mas não justificava a maldade daquele vizinho de anos. Até compadres eram; embora sempre fosse obrigado a viver com um pé atrás e outro na frente.

Passou-se o tempo, mas a lembrança de Navegante não se apagava da memória de Sontônio Bello. Aquele passeio à cidade fora providencial. Conhecera uma fábrica de estátuas que trabalhava com fibra de vidro. Mandara fazer uma, em tamanho natural. Sua chegada trouxe vida nova ao senhor da Fazenda Conceição de Arco Verde. Parecia-lhe recuperar a junta de bois com que trabalhara mais de quinze anos. Até os mugidos de Navio e Navegante a solicitar a ração da tarde, chegara a ouvir, aquele dia. Todavia, não queria o Navegante ali no estábulo. Mandara colocá-lo próximo à porteira da divisa com Jodisão. Seria uma espécie de punição por tamanha crueldade. Não há nada pior que um crime rememorado a toda hora. É como pisada de arreio, sempre esfolando a ferida.

No outro dia, ao aproximar-se da cancela, Jodisão quase teve uma vertigem. Soubera que o animal fora abatido, há anos. Como pode ele estar ali, com aqueles olhos vivos, a olhar-me, espantado, como se houvesse descoberto o mal que lhe fizera ao alimentá-lo com aquelas palhas recheadas de pregos? Será que ressuscitaram o Navegante? Ele está em posição de ataque! Será que veio cobrar-me a vida abreviada pelo mal que a indigestão lhe causou? Assombração, à noite, sempre soube que pode existir; mas de dia, com o sol quente, é a primeira vez! Jodisão estava imóvel, em seu cavalo, como a estátua. Os olhos fixos de Jodisão no animal e o calor do sol davam-lhe a impressão de que o boi se movia em direção à cerca. Ainda bem que estou a cavalo! Como que o compadre Antoim foi comprar outro boi igualzinho, sô?! Oh gente! Tava até me esquecendo de que tenho de ir trabalhar. Ah! É uma estátua! Que desaforo, botar essa coisa bem aqui, na minha passagem! Nunca é tarde para se acertar contas nessa vida! O inferno é aqui mesmo, dizia o meu avô! O inferno são os outros, ouvi dizer certa vez a Feliciano, homem de saberes e livros.

Àquela noite, Jodisão não conseguiu o sono de quem passa o dia sobre uma tora puxando serra. A todo momento acordava-se aos sobressaltos, sempre correndo do Navegante que abandonara aquele passo pachorrento do engenho ou do arado, para precipitar-se sobre a cerca e vazá-la como se os fios de arame não passassem de linha de costura. Os chifres, já rombudos pelo tempo, agora lhe pareciam pontiagudos; prontos para lhe rasgar as carnes das nádegas ou dos costados.

Jodisão não queria acreditar no que lhe estava acontecendo. Sabia que não passava de sonho; mas a cada vez que se punha a modorrar, a figura do animal lhe aparecia, sempre mais ameaçadora. Seria o espírito de Navegante que estava por dentro daquela estátua? Levantou-se disposto a destruí-la; porém, Belmira, a mulher, acordou-se:

— O que foi, homem? Já despertou, pulando, umas três vezes!…

— Aquele maldito boi não para de me perseguir. Basta eu fechar os olhos para vê-lo, enorme, vindo sobre mim! Você também não está vendo?

— Eu, hem!.. Ta ficando maluco, Velho?! Espere que vou lhe trazer uma água com açúcar! Você ficou impressionado com a estátua. Aquilo não passa de um plástico qualquer!…

— Mas que é idêntica ao Navegante, é!…

— Quem mandou fazer maldade!?…

— Vá pros infernos, mulher! Vai querer me azucrinar…. também

— Aqui está a água! Vê se se acalma, homem! O galo já cantou; deve ser umas quatro horas!…

Jodisão, àquela noite, ainda se acordou, cansado, mais duas vezes. O coração pulava-lhe na garganta, como se quisesse sair pela boca.

Dia seguinte, pensou dar volta pelos Rosa, para chegar ao serviço. Fez os cálculos. O percurso triplicaria. Era melhor enfrentar o mistério. Sempre fora homem de coragem. Nun­ca perdoou desaforo. Não será uma estátua que irá me abalar, diabo! Irei por onde tenho de ir. Se o demo aparecer, meto bala nele! Não será uma estatua que irá me perturbar os nervos!

Jodisão chegou à porteira, trêmulo. Não estava se conhecendo. Nem mesmo no dia que Toim Porela lhe apontara aquele revólver, chegara a tremer. Que diabo tem esse boi? Um tropel de animal o seguia, sem que se visse nada às suas costas. Os cascos do cavalo não poderiam produzir tamanha cavalgada. Será que estou ficando louco?

Naquele dia Jodisão trabalhou atabalhoado. Não fosse a maestria de Geraldo Polina, e teriam inutilizado toda uma tora de jacarandá. Em seus ouvidos, o reque-reque da serra era contraponteado pelo tropel de Navegante que, como no sonho, estava sempre ao seu encalço. Não via a hora de o dia terminar. Iria tomar uma boa birita para poder dormir sossegado. Foi pior, sonho e alucinação se conjugavam em seu inconsciente. Madrugada velha, despertou-se, aos gritos, empapado de suor.

— O que houve, Jodisão? perguntou-lhe Belmira, amedrontada.

— Não me amole, mulher! Não vê que, desde que botaram esse boi aí na divisa, não tive mais descanso!

— Ara, homem, não vê que não passa de um monte de… Nem sei do que… É uma coisa imóvel, como uma fotografia! Por que você não ficou alucinado quando tiveram de sacrificar o xodó de Compadre Antônio?…

— Não sei! Parece que a estátua trouxe o espírito do animal de volta:

— Que espírito?! Animal nem alma tem!?…

— Quer saber de uma coisa? Vamos dormir que, amanhã, me espera uma tora enorme de sacupema para fazer casqueiro! Além disso, ainda tenho de trabalhar para esse homem! Ele não quer perder um palmo daquela árvore que seu trisavô plantara naquele alto e que a última tempestade derrubou.

O sono não veio mais àquela noite. Jodisão levantou-se moído. Tenho de tomar uma atitude. Se esse boi começou a perseguir-me depois que instalaram aquela coisa ali na porteira, só me resta dar-lhe um fim. Mas, se não havia como provar que eu fora responsável pela morte do Navegante, agora, se destruí-la, além de um crime novo, ainda ficará patente o antigo. Não tenho saída. Além do mais, ela está bem à frente da casa de Salatiel, que poderá me delatar. O negócio é esperar. Nada como um dia atrás do outro. Às vezes, tudo não passa de impressão minha. Um boi morto não poderá me fazer mal algum. Não sei por que estou dando importância a sonhos! Vou encarar esta desgraça, como sempre fiz. Vou passar por lá, hoje, decidido, como se nada de novo houvesse nas proximidades.


Jodisão abriu a porteira fingindo ignorar a estátua que lhe parecera ainda maior. Que impressão mais idiota! Onde já se viu matéria morta crescer? Assim que transpôs o rego d´água, sentiu um bafo quente pelas costas. Baba de boi, mesmo! Malcheirosa, como se viesse de entranhas podres. Mais essa agora! Como explicar esse mal-cheiro em minha roupa? Se contar a verdade, vão dizer que estou maluco. No trabalho, Geraldo não reclamou do almíscar. Não queria que ele me visse naquele estado. Ainda bem que ele fica em cima do jirau da serraria! Mesmo assim, resolveu inquiri-lo sobre a causa daquela fedentina, vê se ele dizia alguma coisa, nem que fosse para dizer que devia ter tomado banho depois de um dia inteiro de suor:

— Compadre, não há de ver que um passarinho me deu uma cusparada, quando passava pela capoeira! Acho que o excremento se misturou com o vapor da água e impregnou minha camisa. Está sentido um cheiro sufocante, Compadre?

— Estou não, Compadre! Acho que é impressão sua! Sua roupa está limpa, como foi pega do armário. Não vejo nada nela, não! Deve ser impressão sua!

Que diabo! Só eu me sinto sufocado com esta coisa. Será que o Compadre está cego? Como que me sinto sujo e malcheiroso?

À volta para casa, pareceu a Jodisão que a estátua tinha se aluído; estava mais perto da estrada. Como pôde se mover, se está afixada em uma sapata de concreto? Esse bicho está a fim de me liquidar. Por que ele não me chifrou numa daquelas vezes que o alimentei com palha e prego? Eu o chamava, e ele vinha, com aquele passo pachorrento. Abria a boca e engolia a palha, mal esta se molhava com sua baba de garapa, tomada ao cocho, no curral. Os pregos desciam sem que os mastigasse. Depois, se ninguém sente este fedor, alguma coisa está errada! Por que só eu me sufoco com este almíscar insuportável?!

Jodisão não desejava nova agressão, semelhante à que lhe ocorrera pela manhã. À aproximação da passagem, fixou os olhos nos olhos estatelados da estátua, como a dizer que não temia as energias que ela parecia emanar. Ao fechar a cancela, pôde vê-la frente à frente, embora sentisse que ela o acompanhara todo o dia. Antes de se virar para o destino, um berro gemido e uma golfada de sangue em seu rosto. Um sangue quente, visguento, que lhe escorria pelas vestes, avermelhando-as. Jodisão levou a mão ao revólver; mas recolheu-a, como se uma força superior a sustivesse. Pela primeira vez na vida, teve medo. Percebeu que não enfrentava homens; mas o espírito de um boi vingativo. Após limpar os olhos, pôs-se a caminho, sem nada dizer.

Ao chegar à casa, quis livrar-se daquela coisa pegajosa que lhe escorria pelo corpo, antes que alguém o visse naquele estado. Tinha de pedir roupa limpa à mulher. Sabia que Belmira não se arriscaria a contar nada a ninguém. Chamou-a, mas ela não manifestou espanto algum ante sua viscosa carapaça vermelha. Será que só eu estou vendo essa coisa imunda que se adensa à passagem do tempo? Acho melhor testar os olhos de Belmira:

— Belmira, você não esta vendo nada no meu rosto e na minha roupa?

— Não! Por quê?

— Por nada, não!

Esse bicho tem parte com o demo ou… será castigo de Deus?! O Geraldo também não sentia o mau-cheiro; não via nada em minha camisa. Achou até que ele é que fora cuspido por algum pássaro. O que posso fazer para me libertar dessa coisa!? Amanhã será domingo, vou aproveitar para ir à casa de Toimbijim. Se o povo tem razão, ele deve entender das coisas do Sujo e poderá me dar uma receita para eu deixar de me influenciar por essas coisas do além! Onde já se viu um boi morto, há tanto tempo, acabar com a minha tranquilidade!

Jodisão banhara-se; contudo, continuava com a sensação de que o sabão de sapucaia não retirara nada daquela gelatina grudenta que lhe impregnava, agora, até as entranhas. À noite, a bem dizer, não dormira! Sentia-se revolvendo dentro de uma câmara de visgo, a cada vez que se virava na cama. Ao primeiro canto do galo, levantou-se. Amanheceria na casa de Toimbijim.

O pactuado já ordenhava as vacas, quando Jodisão chegou. Toimbijim manifestou certa repugnância ao vê-lo.

— Eu já o esperava, Compadre! As cosias não andam boas pro seu lado. O pior é que nada posso fazer. Você sabe que Antoim Bello é homem que nunca fez mal a ninguém, mesmo quando se vê prejudicado. Não tenho poder algum contra ele. O Grande Bem o protege!

— Até quando esse boi vai me perseguir? Não aguento mais, Compadre! Este visgo malcheiroso que me envolve, causa-me um mal estar dos diabos!

— Espere um pouco, que vou consultar os meus protetores!

Passada uma meia hora, Toim­bijim retornava, cabisbaixo. Sentou-se no tamborete usado para a ordenha, mas nada dizia. Jodisão olhava-o, inquisitivo. Será o que me aguarda? Se ele disser que devo pedir perdão ao Sontônio Bello, está enganado! Prefiro enfrentar toda desgraça, que me humilhar.

— Olha, Compadre, essa coisa só vai acabar, quando lhe ocorrer uma grande desgraça. Não sei o que é. Será um grande mal!

Desconsolado, Jodisão se despediu do Compadre e se pôs a caminho. Ainda bem que não preciso transitar por aquela estrada hoje. Passar o domingo com essa sensação de estar coberto por uma massa imunda é horrível. Ainda bem que só Compadre Toim a vê. Já me encontrei com o Zé Bellinho e o Ângelo Bello, e eles nada esboçaram que denunciasse repugnância. Zé Bellinho até achou que estou com ótima aparência. Ele é muito brincalhão, mas não acredito que tivesse ironizado. Se fosse a mulher dele, Conceição, sim; ela tem um terceiro olho. Capta as coisas no ar e na matéria.

Jodisão chegou à casa e encontrou-a entupida de filhos, netos… Entrou e foi direto para o quarto. Não estava para conversas, ainda mais que sentia um cheiro sufocante de sangue podre. Expor aquele visgo ao sol não fora uma boa medida. Sentia-se envolvido por uma camada gelatinosa, deteriorada. O filho mais velho, que viera ter com ele, nada dissera. Real­mente, estou dominado pelo espírito da vingança, sem poder me defender. Logo eu que sempre comandei as ações, eu que dominei grandes e pequenos. Todos sempre me disseram “Sim senhor” e, agora, nada posso contra essa força invisível que me anula.

Aquela noite, passara-a com o tropel de Navegante nos ouvidos. Cada vez que se acordava, a cabeça estava para estourar. Não de dor, mas pelo ruído dos cascos no cascalho. Não era apenas o Na­vegante. Eram muitas juntas de bois que se aliaram a ele, inclusive o Navio, morto meses após o infortúnio do velho companheiro de canga. Somava-se a esse mal estar a fedentina de sangue em decomposição, que lhe descia pelas narinas, como se as fosse estourar. Isso é sofrimento demais para um ser humano. O pior é que Com­padre Toim me disse que desgraça maior se abaterá sobre mim.

Não sei se vou aguentar. Qualquer coisa, estouro os miolos. É o único jeito de aliviar esta vida miserável. Até a chegada da es­tá­tua, vivia tão tranquilo! Não sei por que acontecem estas coisas comigo. Nunca fiz mal a ninguém. Apenas cobrei aos outros aquilo que me tiraram. Bastava saber que alguém houvesse falado qualquer coisa, para tirar satisfação. Mas isso não é motivo para que esse boi venha me aporrinhar!

Àquele dia, ao passar pela estátua, cobriu o rosto com o chapéu, esperando que o animal não se desse pela sua presença. Sua artimanha, no entanto, não surtiu o efeito desejado. Bastou pôr o pé no terreno de Sontônio Bello, para ouvir um espirro, seguido de uma gosma que veio se sobrepor à outra; só que ainda mais nauseante. Com o corpo todo encoberto de visco, seus braços ficaram suspensos no ar, parecendo um pássaro pronto a alçar voo. Como irei trabalhar com essa coisa me comprimindo o corpo? Resolveu enfrentar o animal, pelo menos em pensamento. Por que não me mata de uma vez, já que está se vingando do que o fiz, há anos? Como resposta ouviu um berro sonoroso, parecido com uma gargalhada.

Para se ver longe daquela coisa e de seus poderes, a que não conseguia explicar, esporeou o matungo e virou a curva, que se seguia ao rego d’água. Aos poucos, pôde retornar os braços à posição costumeira; mas o fedor vindo às ventas revolvia-lhe o estômago. Espero que Compadre Geraldo não se aperceba dessa coisa nauseante. Senão, como explicar-lhe as causas? Minha situação está ficando, cada dia, mais incômoda! Não sei realmente o que fazer, se nem Compadre Toimbijim soube me aconselhar. O pior ainda está por vir. Que castigo poderá se sobrepor à desgraça dessa fedentina? Teve de interromper o reque-reque da serra umas três vezes. O vômito vinha farto; mas não havia nada para expelir. Nem café tomara, ao sair. O estômago, embrulhado com o fartum de sangue podre, agora se comprimia, nauseado.

À hora do almoço, Jodisão sequer abriu a marmita. Sentia as narinas ardentes, como se fossem estourar. À simples vista da comida no prato de Geraldo foi suficiente para golfadas de bílis, secundadas pela observação do companheiro:

— O Compadre não quer ir à cidade, consultar o dr. Semir? Desde que chegou está muito amarelo! Parece que está com icterícia!

— Fique tranquilo. Não creio que seja grave! Quando chegar a casa, tomo um chá de mané-magro! Ele sempre me cura estas indisposições!

— Carqueja, não é melhor? Quanto mais amargo, mais o fígado agradece, Compadre!

— Você tem razão! Quando voltar, vou aproveitar e apanhar um molho, ali perto da cachoeira do Gonzaga!

Jodisão pouco rendeu àquele dia. À volta, porém, o animal deixou-o passar despercebidamente, como se nunca o tivesse visto; mas a camada incômoda de visgo continuava. O cheiro recendia no cérebro, como se fosse estourá-lo. O banho, mesmo esfregando-se com a escova de limpar alpercatas e coxinilhos, não eliminou o carniça que o envolvia. Teve uma noite tranquila. Belmira até estranhou não haver se acordado, com os costumeiros pinotes do marido. Pela manhã, até esboçou um sorriso; arriscou um assobio. Sempre ouvira dizer que quem canta seus males espanta. Tinha de espantar aquele fartum que lhe não saía das narinas. Talvez, esquecer-se da estátua, do mal que fizera ao Navegante, fosse a solução.

Ao dirigir-se ao trabalho, novamente fez de conta que nada mudara nas cercanias do rego que leva água à casa de Sontônio Bello. Passou, altivo, sem olhar para a estátua. Apenas o cheiro nauseante permanecia em suas ventas. Passou a primeira ponte, a segunda, tranquilo. A estátua realmente tinha se arrefecido. Será que o boi se contentara com o zunido de cascos no ouvido e com aquela redoma de nojo impondo-lhe um diuturno mal-estar? Não é bom festejar. Afinal, continuo dominado pela desgraça dessa estátua. Também não posso me esquecer de que algo pior haverá de me acontecer. A menos que Toimbijim tenha errado seus vaticínios. Foi um dia profícuo, aquele!

Ao entardecer, adotou a mesma postura. Boi de carro geralmente é cordato. Ainda mais o Navegante, que tinha receio até de coicear as mutucas que o azucrinavam, ao sol quente. À passagem, teve a sensação agradável de que a camada de visgo se desfizera, e o mal-cheiro se dissipara. Aquele barulho intermitente de cavalgada pelos seixos abandonara-lhe os ouvidos. Era a felicidade antiga. Poderia dormir sossegado, àquela noite. O boi se esqueceu de mim. Tomara que Toimbijim tenha falado aquelas coisas só pra me perturbar. Apesar de Compadre, nunca confiei nele. Aquilo é cobra criada: está sempre disposto a um bote, mesmo que a vítima seja de sua cozinha.

Colocou a cabeça no travesseiro, feliz. A modorra veio rápido. Depois de um dia cheio, puxando serra, nada como uma cama macia para refazer os ânimos. Não demorou para que Navegante viesse cortejá-lo. Via-se andando pela proximidade da cerca, seguido pelo animal babando espuma de garapa, tirada à taxa, desejoso daquelas palhas graúdas. Milho das vargens do Sapateiro. Àquele dia, o animal parecia esfomeado. Engolia palha e espiga com uma sofreguidão nunca vista. Terminado aquele balaio, teve de correr ao paiol e descascar mais outro. Não teve descanso. Ouvia os berros do animal, como se ele estivesse ali, no terreiro. Belmira, àquela noite, não dormiu. Jodisão revolvia-se na cama, dava de braços, como se estivesse falando com alguém. Em certo momento, um salto. Caiu de pé, ao lado da cama:

— O que foi, homem! perguntou-lhe Belmira, assustada.

— Nada, não! respondeu, deitando-se.

Em instantes, ressonava e dava pinotes, como se o sono não tivesse sido interrompido. Navegante não lhe dava um segundo de trégua. A palha descia-lhe pela garganta, sem mesmo receber aquele trato que antecede à deglutição. Ma­dru­gada velha, Belmira ouviu gemidos. Não se preocupou. Aquilo já tinha se tornado uma rotina. O dia amanhecera, e Jodisão continuava dormindo. Isso nunca acontecera naqueles trinta anos de casados. Quando abriu a janela, como fazia todos os dias, quase teve um desmaio. Mesmo assim, conseguiu soltar a voz, com uma potência incomum para uma mulher submissa, acostumada a destemperos e desaforos, mal raiava o dia:

— Jodisão, que cara é essa? Nunca vi você assim, com estes olhos de medo! O que aconteceu?

— Você está cega?! Não está enxergando o Navegante?

Jose Fernandes é escritor, crítico literário e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

0 comentários:

Postar um comentário