Fernando Pessoa e o Eu Lírico


Quando estudamos o conto e o romance, estabelecemos a diferença entre o autor e o narrador - entre aquele que escreve o texto (também chamado de autor empírico) e aquele que narra a história (a voz que compõe efetivamente a narrativa). Um exemplo bem claro é o romance Dom Casmurro: seu autor é Machado de Assis e seu narrador (a voz que conta a história) é a personagem Bentinho.

Na narrativa de ficção, o autor não fala por si, mas cede a palavra ao narrador. Mais ou menos como faz um ator ou uma atriz numa peça de teatro, num filme ou numa novela: ele/ela deixa de ser ele/ela mesmo/a para ser a personagem - o ator ou a atriz cede sua pessoa à personagem ficcional.

Esse mesmo recurso vai ocorrer no texto poético. Também ali não é o autor que fala, mas ele cede a palavra a uma voz que enuncia o poema; ele constrói o que chamamos de "eu lírico" ou de "eu poético". O poeta é o autor, mas é o eu poético que enuncia o poema, que expressa uma certa visão de mundo, que dá o tom ao texto.
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Para exemplificar isso, vale a pena fazer referência aqui ao poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) - considerado não só um dos maiores poetas de nossa língua, mas também um dos grandes poetas da literatura universal.

Fernando Pessoa vivenciou tão profundamente a questão do eu poético que, ao construir sua extensa obra, lançou mão de um recurso que até hoje nos fascina: ele deu nomes próprios (e biografias) a cada um de seus eus poéticos.

Além de assinar poemas com seu próprio nome, Fernando Pessoa criou vários outros "poetas", dos quais merecem especial destaque Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Não se trata de meros pseudônimos a encobrir a autoria dos poemas ou mera brincadeira, mas de efetivas personalidades poéticas, cada uma das quais com um projeto poético bem diferenciado - uma peculiar visão de mundo e um modo singular de enunciá-la poeticamente.

Assim, Alberto Caeiro crê que só há sabedoria no contato direto com a natureza; só os sentidos nos dão efetivamente conhecimento. Por isso, Caeiro se vê como parte da natureza (tal como uma árvore, uma pedra ou uma flor), vive o presente das sensações (o eu poético se diz feliz simplesmente por estar no mundo, apenas sentindo-o e sentindo-se nele) e foge de todas as idealizações e abstrações. Escreve textos em linguagem simples e em versos livres.

Como exemplo, leia o seguinte poema retirado de O guardador de rebanhos. Nele, o eu poético identifica, de início, seus pensamentos com sensações (Penso com os sentidos) e reconhece, por fim, que sabe a verdade e que é feliz ao sentir todo o corpo deitado na realidade num dia de calor:

IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de go?á-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

(1914)

PESSOA, Fernando. Obra poética. (Poemas completos de Alberto Caeiro). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969, p. 212-213.

Álvaro de Campos é o poeta do mundo moderno, do mundo urbano e industrial. É a voz extrovertida que soube exaltar o "progresso técnico" na Ode triunfal, donde retiramos o seguinte excerto:

(...)
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante1 como um automóvel último-modelo!
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial, insaciável!
(…)

(1914)

PESSOA, Fernando. Obra poética. (Poesias de Álvaro de Campos). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969, p. 306)

Ao mesmo tempo, contudo, é a voz que percebe os efeitos da sociedade industrial na alma humana: sente a dor de seu tempo, as contradições da civilização técnica. Não é a voz da harmonia sensorial com a natureza, mas a expressão das angústias, insatisfações, dúvidas, desagregações e descontentamentos do homem moderno. Escreve em versos livres e está longe da serenidade de Alberto Caeiro, como se pode ver pelo poema que transcrevemos abaixo:

O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas -
Essas e o que falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Issimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

(1934)

PESSOA, Fernando. Obra poética. (Poesias de Álvaro de Campos). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969, p.393-394.

Ricardo Reis, por sua vez, cultua um padrão estético que persegue o equilíbrio racional seja na forma (um estilo elevado, uma linguagem mais formal), seja na temática (um lirismo contido, comedido, sem exaltações ou paixões febris). É um eu poético que reflete racionalmente sobre o existir, sente a passagem do tempo, tem consciência da inevitabilidade da morte e busca viver uma vida sóbria e equilibrada.

Observe o exemplo abaixo, em que o eu poético refere-se ao efeito da chama da lâmpada noturna (a chama da vela) ao estremecer (faz o quarto alto ondear, altera seu entorno) para em seguida construir, a partir desta imagem, uma representação do equilíbrio sempre cultuado por ele (os deuses concedem a seus calmos crentes que a chama da vida nunca trema - fique firme como preciosa e antiga pedra - e, portanto, não provoque perturbações em seu entorno):

Da lâmpada noturna
A chama estremece
E o quarto alto ondeia.

Os deuses concedem
Aos seus calmos crentes
Que nunca lhes trema
A chama da vida
Perturbando o aspecto
Do que está em roda,
Mas firme e esguiada
Como preciosa
E antiga pedra,
Guarde a sua calma
Beleza contínua

(1914)

PESSOA, Fernando. Obra poética. (Odes de Ricardo Reis). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969, p. 263.

Por fim, neste quadro de heterônimos, os poemas assinados por Fernando Pessoa (ele mesmo, como se costuma dizer) são ora de revisita aos temas da história de Portugal (uma espécie de reescrita moderna de temas do Camões de Os Lusíadas), ora de meditação introvertida (o eu voltado para seu interior, buscando sentidos para a sua vida, para seus estados de alma), como no seguinte poema em que o eu poético fala de uma vaga mágoa que há em seu coração (como a vibração que paira à tona de água), uma dor serena, uma grande pena que ele, contudo, não sabe de quê:

Paira à tona de água
Uma vibração,
Há uma vaga mágoa
No meu coração.
Não é porque a brisa
Ou o que quer que seja
Faça esta indecisa
Vibração que adeja,
Nem é porque eu sinta
Uma dor qualquer.
Minha alma é indistinta,
Não sabe o que quer.
E uma dor serena,
Sofre porque vê.
Tenho tanta pena!
Soubesse eu de quê!...

(1928)

PESSOA, Fernando. Obra poética. (Poesia de Fernando Pessoa/ Cancioneiro). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969, p. 147.

Para arrematar esta discussão sobre poesia, sugerimos que você assista ao filme O carteiro e o poeta, feito na Itália em 1994, sob direção de Michael Redford e baseado num romance do escritor chileno António Skármeta.

Trata-se de um filme atravessado pela questão poética. Narra a amizade surgida entre o poeta chileno Pablo Neruda, exilado na Itália, e o tímido filho de pescadores, Mário, contratado para entregar as cartas que chegavam para o "poeta do amor". O carteiro pede ajuda a Neruda para ganhar o coração de uma belíssima mulher.

Durante o namoro, com muitas cenas engraçadas, o poeta interior de Mário é despertado, trazendo o romantismo e o autoconhecimento como o maior presente de sua vida. Com interpretações poderosas e imagens espetaculares, esta história vai envolver você completamente.

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