LEIA AQUI O CONTO " RITA" - PRIMEIRA PARTE

__A polícia tá na fazenda Encantado, tão cavocando. Deve de ter ouro na terra do Zé Fernandes.
O boato, feito no único posto de gasolina da pequena cidade, correu rápido feito rastilho de pólvora. Eram aproximadamente nove horas da manhã, às dez, uma estranha movimentação já se fazia perceber .
Os miseráveis e os desabrigados do lugar, tomando conhecimento do boato, começaram a se dispersar, deixando os bares imundos e a pequena praça que lhes servia de moradia. Saiam silenciosos. A possibilidade de trabalho na exploração de uma mina, era uma esperança que em poucos segundos tomou forma.
            O mesmo pensamento silencioso passou a ocupar a cabeça das dezenas de desocupados que perambulavam pelo lugar. Ninguém trocava ideia, como em cidade esquecida por Deus cada um trata de si, melhor era agir sem espalhar.
Às onze horas, começaram a se concentrar próximo à entrada de Encantado. A princípio, não passavam de uma dezena que passou para centena num instantinho. Olhares desconfiados, meio atravessados, vez por outra eram trocados, já que cada homem daqueles podia representar um adversário, um impedimento na hora de se pedir o trabalho. Os mais jovens, então, se fosse possível matar alguém em pensamento, teriam morrido no instante que ali chegavam. Pensavam, mas ninguém dizia nada, nem mesmo os que costumavam dividir a cachaça enquanto papeavam e jogavam baralho nos botecos imundos. Nessa hora não tem amigo não. 
A cabeça fervia de tanta pergunta que não era feita, podia que alguém soubesse de mais coisa... As perguntas pendiam-lhe da ponta da língua. Todos os infortúnios concebíveis, aquela trupe de errantes
refugos humanos já sofrera, estando no lado avesso da vida. A expectativa se tornava quase intolerável: excitação, tensão nervosa, pensamentos em efervescência, abstração. Compartilhar ou não o que lhe corria na cabeça? Mas e se soubesse menos que ele e resolvesse bancar o esperto, pescando daqui, colhendo verde dali? O melhor mesmo era ficar de boca fechada e não dar conversa pra ninguém. Como diz o bom e velho ditado: em boca fechada, não entra mosca.
            O calor era terrível. O sol, a pino, ardia no lombo, a boca parecia grudar, a língua engrossar. Nem uma sombra! Um copo de água? Qual! De onde? Entrar na fazenda sem autorização , não dava, podia se queimar e não conseguir o trabalho, o jeito era aguentar. E firme!
            A presença de tanta gente do lado de fora da fazenda, acabou chamando a atenção do delegado Natal - recebera este nome porque nascera no dia vinte e cinco de dezembro – que mandou um de seus homens averiguar o que aquele povo fazia ali. Estava intrigado, como é que aquela gente soubera dos fatos se tudo havia sido feito com absoluta discrição?

Do lado de fora, a multidão já não era formada só de miseráveis, tinha gente de todo tipo. Muitos estavam ali simplesmente porque não tinham nada para fazer, gente de vida fácil que passa a vida esperando o tempo passar. Esse tipo, que só espera o tempo passar, costuma se ocupar da vida alheia. Faça sol, faça chuva não arredam pé de um lugar onde sentem cheiro de desgraça. São os curiosos de carteirinha, e a polícia nas terras da família mais rica das redondezas, era coisa que não se podia desprezar. 
O homem, encarregado de fazer a tal averiguação, voltou dizendo que nada descobrira porque nada ouvira, já que ninguém nada dissera. Os donos da fazenda estavam temerosos, por hora a suspeita do delegado não se confirmara, mas e se aquela gente resolvesse entrar? Eles poderiam ter mais problemas além daqueles que já estavam tendo.
            Doutor Natal resolveu agir, era melhor prevenir do que remediar.
            __ Cândido, põe gente de guarda nas entradas da fazenda. Ninguém entra, ninguém sai até que tudo esteja acabado.
             Todo o contingente, que ali havia, foi utilizado. Até os trabalhadores da fazenda e seus filhos. Nem os cachorros que tivessem serventia, arreganhando os dentes para assustar, foram dispensados. Afinal, era preciso manter a ordem e garantir a segurança tanto do lado de dentro, quanto do lado de fora, já que lá se havia formado uma verdadeira turba, cujas intenções ele ignorava. Ele, como delegado, tinha a obrigação de zelar pelo bem da coletividade.
            O ar se tornara sufocante por causa do calor e o tempo gotejava lentamente. Parecia que os minutos haviam se transformado em horas, mas ninguém arredava pé dali. Cada qual pensando em seu interesse, uns no trabalho que podiam conseguir, outros na satisfação de ver aquela família em papos de aranha. Isso não era coisa que aqueles, de vida fácil, que passam o tempo cuidando da vida dos outros, podiam perder. O espetáculo seria grandioso! Valeria o sacrifício. Ah! Valeria sim!
            O silêncio tenso permanecia e o sol castigava ainda mais os miseráveis já maltratados pela fome do dia a  dia, turvando os olhos e provocando uma tontura que quase chegava a um desmaio. Sair dali? Nem pensar! Se pelo menos não estivesse tão quente! Sair dali, podia significar dar as costas à sorte. E a sorte é madrasta, não é mãe não! Não podia arriscar!
            É, ficar esperando não se sabe o quê, com a cabeça cheia de planos, dá comichão. Silêncio e tempo passando devagar, cabeça cheia, barriga vazia, podem levar o homem a pensar coisas. Uns com muito, outros com menos. Muito menos! Ouro nas terras de Zé Fernandes! Esse era um dos que tinha demais. Não precisava de mais riquezas. Esse pensamento azeda a alma do que nada tem. Alguns, ali, não têm nem certidão de nascimento!       Não existem para ninguém, nem mesmo pra aquele bando de urubus disposto a comer qualquer carniça! Não votam! Quem se importa com gente que não vota e não existe? A raiva sobe, surda, o suor pinga. Chega de esperar! Vou entrar! Bufando faz menção de ir em direção à entrada da fazenda, mas ninguém se mexe! Recua. Melhor mesmo ficar quieto e esperar.
            A pequena cidade parece abandonada. Ninguém em parte alguma. Até o comércio estava fechado e eram só cinco horas da tarde! Mas quem passasse em frente à pequena construção, que servia de delegacia, podia ouvir os lamentos chorosos de um desesperado:
            __Eu sou inocente. Me tirem daqui. Perguntem ao Jamelão se o que eu disse não é verdade. Por favor, seu guarda! Eu não fiz nada!
            Era Everaldo Luz, conhecido na cidade pelo nome de guerra: Nadine. Rapaz franzino, de voz estridente e gestos afetados que dividia espaço com Ritinha no bordel de Jamelão, atendendo freguês de gosto mais extravagante.
            Ritinha, morena bonita, ambiciosa, fogosa e faceira, chegara àquela cidade por pura obra do destino. Resolveu ir embora de sua cidadezinha e tentar a sorte na cidade grande e, para isso, contou com a ajuda de um caminhoneiro que conhecia desde menina e que lhe oferecera carona.
            Tudo ia bem até que Rubens, o caminhoneiro, resolver que ela devia pagar pela viagem. Pediu, pediu, xingou, esbravejou, socou e nada! A infeliz mesmo com a roupa em tiras, saiu correndo do caminhão e se enfiou mato a dentro sem ligar para a escuridão do lugar deserto, onde nem luz de vaga-lume se via, só o brilho das estrelas naquela noite de breu. Pois que se virasse, deu comida, até pagou um quartinho em um hotelzinho na beira da estrada, quando podia tê-la deixado dormindo ao relento. O que custava, então, satisfazer a fome dele? Ia se perder mesmo na cidade grande! Ligou o caminhão e se mandou! Nem olhou pelo espelho para ver se Rita tinha saído do mato. Era muita ingratidão! Que se virasse!
            Quando o dia clareou, Rita saiu do mato, olhou para um lado, nada!Para o outro, nada também! Que fazer? Pôs-se a andar,  andou por horas a fio. Finalmente chegou à cidade. Bateu de porta em porta pedindo emprego como doméstica, fazia qualquer tipo de trabalho. Mas como moça sozinha e bonita desperta dois tipos de sentimentos nas pessoas: inveja em mulher feia que não quer saber de tentação andando dentro de sua casa, e cobiça em homem mal casado, Rita se viu em um mato sem cachorro. Acabou adormecendo em um banco da praça.
            Toda cidadezinha, de fim de mundo, tem uma praça que é onde os desocupados se abrigam do sol enquanto o mundo gira, a moçada namora no fim do dia e as fofoqueiras se reúnem aos domingos depois da missa, na única igreja católica que há, e que é maior até que a sede da prefeitura, que é para saber das últimas novidades.
            E foi ali que Nadine a encontrou, cansada, esfomeada, esfarrapada, entregue ao Deus dará. Compadeceu-se da pobre e levou-a para o lugar que tinha como a sua casa, o bordel de Jamelão Cintra. Roupas lhe foram emprestadas, foi alimentada e lhe deram um lugar para descansar, no dia seguinte, as coisas se resolveriam.
            O sol já ia alto e Rita nem sentia o queimor em seu rosto. A música tocada em volume altíssimo, as gargalhadas e, por vezes gritos, não atrapalharam o seu sono. Acordou com Nadine que a sacudia:
            __Acorda, bela adormecida. O patrão quer lhe falar. Te apressa se não fica sem café.
Rapidamente a moça levantou-se, ficou em dúvida se devia ou não vestir as roupas que lhe foram emprestadas. Vestiu. Não podia se apresentar ao dono da casa com os andrajos com que ali chegara. Jamelão estava à sua espera na pequena sala, que servia, também, como sala de baile.
            __Tenho uma proposta pra lhe fazer, você pode trabalhar pra mim. Tá interessada?
Claro que estava! Tudo foi tratado, nos mínimos detalhes que era pra ela não pensar que podia bancar a espertinha. Tudo preto no branco e com algum dinheiro, pouco, é claro, lá foi Rita tratar de comprar alguma roupa que a tornasse apresentável. Aos olhos dos fregueses, bem entendido.
            Como já disse, em cidade esquecida por Deus, até pensamento corre rápido, Jamelão encarregou duas ou três mulheres para tornar de conhecimento público que a casa tinha carne nova, que não havia sido batida. E que, na noite do dia seguinte, haveria leilão. Por que não naquela noite? Simples! Como é que os tubarões da redondeza iam ficar sabendo da novidade? Carecia dar tempo para que a notícia se espalhasse e chegasse aos ouvidos daqueles que pagam bem por carne fresca!

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