PAI CONTRA MÃE - 2ª PARTE

      Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de 
estabilidade;é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia                  
 mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não
 ganhasse obastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, 
era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação,
 porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou 
seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição
 anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de
obtidos.
    Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas,
porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para
obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições.
Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não
fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para
cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou
muito.
    Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e
cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados
apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes,
olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O
que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos.
Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia
a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe;
algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a
outras.
    O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o
possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi--
para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que
tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e
foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que
por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo,
nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em
demasia a patuscadas.
    --Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto
não; mas é que...Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre
onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só,
 embora viesse agravar a necessidade.
    --Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
    --Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a
advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era
amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
    A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram
objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e
o riso digeria-se sem esforço.
    Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego
certo.Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo
específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a
criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada
ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
    --Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia
grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que,
além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força
de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era
escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
    --Vocês verão a triste vida, suspirava ela. 
    --Mas as outras crianças não nascem também?
perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que
pouco...
     --Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é
que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
    Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas
muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer
    --A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer
jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos três. --
Seremos quatro. --Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que
faço? 
    -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do
armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique
zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você
passa semanas sem vintém. 
    -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona,
 e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
    Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia
rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

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