SAPATOS DE CAPIM - DAVID GONÇALVES - 2ª PARTE - UM CONTO DIFERENTE SOBRE NATAL, NEM SEMPRE PAPAI NOEL VEM

    O caminhão atravessa a porteira, some na estrada, deixando um canudo de pó na tarde. O capataz fecha a porteira e o lamento das dobradiças enferrujadas corta o pátio.
    Na seda da fazenda há grande rebuliço. O coração do menino ronda inquieto a sala.Lá, não pode entrar. Espia de longe, curioso, magoado. As moças preparam o presépio. Dão os últimos retoques. Pelas frestas de tábuas largas, ele se esforça e consegue ver o Menino Jesus num berço de palha, rodeado por Nossa Senhora e São José. Os animais acalentando - as narinas inchadas expelindo o bafo quente. Lembra-se da vaquinha Andorinha e da mulinha Preciosa, as duas riquezas de sua família. Quer embarafustar corredor adentro,, num supetão, mas é barrado.
    __ Sai daqui, moleque! Aqui não é seu lugar!
    A mulher gorda o pega pelo revés das calças curtas e o joga no terreiro, além do varandão, como um cachorro. Que mal fizera? Quer ver o presépio, ajoelhar-se diante do Menino Jesus e pedir um presente. Desapontado, ele sai pelo pátio, sem destino, uma grande dor no peito magro. Sente raiva da mulher gorda. Jesus a castigaria, com certeza. Deseja que ela se transforme numa rã chata, redonda, buchuda, as papadas caindo de lado, orlada de limo verde e fedorento. Com muito arrependimento, ela cantaria: um dois, h-a-ã-ã, um dois h-a-ã-ã-ã-ã-ã! Príncipe nenhum haveria de beijá-la. Nenhum. Apodreceria no brejo, repetindo um-doisssss-h-a-ã-ã-ãããããã!
    O menino - olhos grandes e saltados - se abeira do pai, Seu Angico, peão respeitado, empurrador de boia-fria nos caminhões de lona, na esperança de receber migalhas de amor. Lembra-se da missa a que assistiu meses atrás - o padre de Jandaia, um sujeito taludo e ruivo, numa voz doce e confiante, dizia que era tempo de amar. O Menino Jesus entraria em todas as casas e nelas faria um berço de capim. Permanece ao redor do pai olhando os trabalhadores desnutridos e cadavéricos. tenta descobrir o que há por trás daqueles rostos pejados de rugas. Mas não encontra nenhuma alegria. Roça nas pernas do pai que o interpela:
    __ Sai, moleque! Não vê que estou na lida?  

2 comentários:

ZaidaSherrylKian disse...

Tenho lido apenas alguns exertos de alguns livros de David Gonçalves. Confesso que aprecio a forma clara e simples, e absorvente, da leitura.

Odenilde Nogueira Martins disse...

OBRIGADA POR VISITAR MINHA PÁGINA. HÁ POSTAGEM DE SAPATOS DE CAPIM: PARTES 1,2,3. EM BREVE ESTAREI POSTANDO MAIS, ABRAÇO.

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