SAPATOS DE CAPIM - DAVID GONÇALVES - 1ª PARTE - UM CONTO DIFERENTE SOBRE NATAL... NEM SEMPRE OS FINAIS SÃO FELIZES

   Vem esta viração da tarde farfalhando as roseiras e as folhagens verdes, sacudindo levemente as trepadeiras do mato, redescobrindo na alma a alegria doce da infância. ela chega devagar toda tarde, acaricia a pele e purifica os sonhos do menino que existe dento do homem grande e surrado pelo tempo...
    Aquele menino magro e franzino, que abre a porteira de dobradiças enferrujadas, sou eu. ele se dependura no gemido prolongado das dobradiças enferrujadas no pátio da fazenda. O gemido parece alma penada solta no meio das pastagens e dos cafezais verdes.
    O sol vermelho, na tarde calorenta, é uma ciranda de fogo dependurada na aba dos morros, à espera do encantamento da noite. As sombras invadem o pátio. Os boias-frias trepam nos caminhões de lona. Cansados, estropiados, cobertos por uma camada de terra vermelha, soltam suspiros entalados nas gargantas ressecadas. O patrão paga-os, nota por nota, como se eles fossem vadios.
     __ Você, amanhã, não precisa vir. O trabalho não rendeu. Quem sabe, noutro dia ...
     __ Mas tenho família, preciso do trabalho, mais uma chance _ implora o boia-fria, como mendigo.
     __ Já disse: vá andando! _ engrossa a voz.
    Depois, o patrão chama o gato:
    __ Não me traga mais esta gente carcomida, que não aguenta sequer um saco de batata às costas!
    O menino brinca pelo pátio. Corre de um lado a outro. Parece que engoliu um pedaço de ciranda de sol. dependura-se na porteira e faz repetir o lamento prolongado das dobradiças enferrujadas. No mourão esquerdo há uma caveira de boi. É para espantar as pragas, doenças e maldições. O rangido das dobradiças corta o pátio empoeirado e o caminhão de trabalhadores se movimenta devagar _ o fordeco geme, sente o lamento da porteira.
    __ Para com isso, menino! _ ralha o capataz. __ Tem fogo no rabo?
    Ele pula da porteira e mete os pés na poeira fofa como um redemoinho. Reina no ar uma alegria incontida. O sangue pula nas veias. Os olhos brilham. Novamente, o vento da tarde farfalha as roseiras, os folhames das trepadeiras e arrepia sua pele. Ele não se aguenta de contentamento; parece que vai estourar de tanta alegria. Ah, o mundo é belo, a vida se renova a cada instante.

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