PREFÁCIO AO LIVRO "VELEIROS DA ESSÊNCIA", DO POETA SUL-MATO-GROSSENSE, RUBÊNIO MARCELO.
POESIA E ESSÊNCIA
José Fernandes- Escritor
Não sem razão, o existencialismo, ao contrário da metafísica aristotélica, prega que a existência precede a essência, porquanto o homem pertence à humanidade, mas não nasce humano, uma vez que o humano, ao constituir a essência, a substância do ser do homem, tem de ser conquistado. A arte, mormente a poética, constitui uma forma de o ser revelar-se em essência, à medida que ela se faz com linguagem e em linguagem, que é a forma de o homem fazer-se e desvelar-se humano. Se, às vezes, essa preocupação com a essência não se manifesta claramente, por intermédio de uma poesia metafísica, outras, ela constitui a razão mesma do poetar em uma determinada fase do existir e do ser no poético, como o vemos nessa obra madura de Rubênio Marcelo, intitulada, propositalmente, de Veleiros da essência.
A imagem náutica, inerente à palavra veleiros, traduz bem, já no título, a noção de viagem, de itinerário, marcas da existência que caminha e se encaminha à conquista da essência, da substância mesma do humano. Trata-se, sem dúvida, de uma imagem arquetípica que, em decorrência da simbologia das águas, nomeadamente as do mar, materializa o estado de ser que, como elas, se transforma ao longo do percurso mar-rio-mar ou rio-mar-rio, já que a imagem, ao fundir as essências das palavras, torna-se matéria da existência. No poema que dá nome ao livro, as imagens náuticas e urânicas são perfeitas, pois ensejam uma fusão entre o alto e o baixo, entre céu e mar, exatamente a distância que o ser deve percorrer, para ascender à essência, ao sublime. Sobretudo, elas substantivam o processo de verticalização do ser em sua viagem ontológica, contrária à viagem horizontal, própria dos entes, dos objetos, que permanecem em estado ôntico. Exatamente, por isso, os veleiros vêm de horizontes nunca vistos, como já verificamos no primeiro seguimento do poema, que retrata uma espécie de viagem primeira, executada a partir da fundura do tempo:
I.
vêm de horizontes nunca vistos
e trazem à proa
o mapa das messes inabituais
num tempo infinito
de invictas bandeiras e constelações...
trazem o lábio astral e o astrolábio
das meditações azuis
que tecem sublimes mareações...
têm adriças de sol e cordoalhas de mitos
que atesam a fruição
de transcendentes singraduras...
Por isso, a própria noção de transcendência, inerente à viagem e à conquista da essência, é materializada em linguagem, através da expressão tempo infinito, uma vez que ela se faz em constelações orientadas por astrolábio e mediante meditações azuis, que remetem para o imaginário e para a tarefa típica do pensar-se, imprescindível ao ato de transubstanciar-se em humano. Exatamente por isso, as mareações ligam-se ao mar e ao sol, posto que se singra o transcendente. A imagem náutica, objetivada pela palavra veleiros, no plural, converte-os em veículo existencial, à medida que se configura uma embarcação cósmica e, portanto, um processo simbólico que compreende toda a humanidade. Justamente por isso, chegam altivos e sem defensas/traçando itinerários/coesos, concordes com o que se exige de quem viaja em existência à busca da essência.
Essa viagem, entretanto, por ser um trajeto de destino, compreende certa dose de incerteza e, por isso, de períodos claros e escuros, em que se enxerga o percurso ou nada se vislumbra, como observamos na imagem líquida e cromática representada pela fluidez e, notadamente, pelas cores das nuvens:
III.
com místicos galhardetes
mirando os destinos cor de nuvens
afagam elísios
que sibilam prelúdios e vilancetes
e sabem dos seus timoneiros
trajados de brim
em brancas manhãs...
Como se trata, realmente, de uma viagem existencial, em que os entes empreendem um trajeto que os leva ao ser e, em decorrência, à essência, todos os homens são timoneiros/trajados de brim/em brancas manhãs..., já que todo dia é passagem para um outro estágio e recomeço desse mesmo processo. Quem não se puser em viagem permanece em estado de ente, apenas pertence à humanidade, mas não se torna humano. Em decorrência, os veleiros afagam elísios, porque a assunção do estado de ser em essência faz com que esse ser ascenda à condição de herói e, por isso, mora em si mesmo enquanto essência e, na linguagem, entendida como morada do ser. Justamente por isso, os elísios se confundem com a própria poesia, que é diálogo do ser consigo mesmo, no momento em que eles sibilam prelúdios e vilancetes e se tornam a mansão do ser.
Se a existência se justifica em função da essência que se manifesta em linguagem, o fato de a poesia constituir-se uma realização inteiramente linguística transforma-a na forma e na fôrma de a substância do humano dialogar consigo mesmo e revelar-se como ser. Esse procedimento se evidencia no momento em que os veleiros, matéria mesma de embarcação e de condução da existência, planam em silêncio na crista do verbo. Ora, considerando que o verbo é a matéria e a substância da poesia, e os veleiros constituem a imagem mesma da viagem existencial, o silêncio e o verbo configuram maneiras de o ser lírico conduzir o existir ao porto, à essência. Justamente por isso, os veleiros planam na crista do verbo e singra o mar, substantivado em imagens náuticas e ornitológicas que se desprendem de sua isotopia, como podemos sorver na quarta estrofe, composta com rara felicidade, por palavras que conjugam as águas e seus mistérios de viagem que traduzem a trajetória do ser lírico em direção à essência:
IV.
planam em silêncio na crista do verbo
|atentos ao mínimo aceno|
ao barlavento da criação
entre códigos, gaivotas e plenilúnios...
singram íntimas dádivas
para ampliar as escotilhas do sonho
e plenificar faróis nos
e s t a i s
da vaguidade...
Não sem razão, a imagem náutica, centrada sobre a expressão barlavento da criação, traduz o próprio processo do fazer poético e do fazer-se humano, através da simbologia dos ventos e do ar. O vento é para o barlavento o que é a palavra para a poesia, e o ar, para o ser que se quer em essência, uma vez que ele é a imagem mesma do espírito, naquela concepção da metafísica oriental e da simbologia da travessia, ascensão ao sublime, entendido como transfiguração, como ultrapassagem do estado de ente e a consequente transformação em ser sendo. É justamente por isso que os veleiros vêm do estro/ para nos desancorar das ilhas perdidas, porque ilhar-se é fechar-se em si mesmo, sem o necessário diálogo com o mar, representação hídrica da expansão e da conversão do ser em substância, em quididade de humano e, evidentemente, em essência de poesia, porque em linguagem transformado:
V.
vêm do estro
para nos desancorar das ilhas perdidas
vêm para fecundar correntes
no estio das vigílias
e para nos (e)levar
à paz das alvíssimas florações
dos portos longínquos...
Exatamente por isso, eles vêm fecundar correntes no estio das vigílias, porquanto o poético, como viagem de existência, exige reflexão e artifício, porque arte é engenharia de palavras que se erigem para nos (e)levar/à paz das alvíssimas florações/dos portos longínquos... Essas florações são exatamente a transfiguração, a transformação em essência operada em nível de ser e de poesia. É por isso que a isotopia semântica, veleiros, aponta para uma dupla função metafísica: a relativa à arte poética, materializada nos poemas e no livro que os enfeixa, e na trajetória percorrida pelo ser em busca da substância do humano.
A exacerbação das imagens náuticas no segundo poema, sabiamente intitulado Sal da existência, conforma o estado de ser em viagem tanto em relação ao homem, quanto em relação à poesia, como se um e outro se constituíssem de matéria idêntica e, em decorrência, de substância também idêntica. O simbolismo inerente ao sal substantiva o processo por que o ser tem de passar pela existência para ascender à essência, naquele sentido de transcendência, de ultrapassagem dos limites da condição humana. Além disso, ele aponta para as dificuldades a serem enfrentadas, uma vez que, sendo conquista, o existir implica luta constante, porquanto não se viaja sem rumo, mas guiado por um objetivo que demanda um ato e, não, de uma ação inconsciente. Por isso, o sal ainda revela a conservação de princípios por que se tem pautar para se transcender, como ocorre também com o ato de criar o poema, uma vez que ele só se realiza mediante a ciência do poetar, altamente exigente, posto que a pronúncia da palavra implica retorno às origens, àquele faça-se que o poeta imita, como se tivesse competindo com os deuses, ou com o Deus.
A interação entre o simbolismo do sal, que lembra o mar e a travessia empreendida pelos veleiros, com as imagens náuticas não poderia ter sido melhor para converter em linguagem essa viagem essencial de ser e de poesia com todos os sonhos e percalços que ele implica. Consoante essa interpretação, o fecho do poema é perfeito, à medida que procede um jogo em que o positivo e o negativo se sucedem, como é e deve ser no real existir do ser em procedimento de essência:
V.
no aguardo da caravana do crepúsculo
a certeza medonha
de anúncios e desolação.
em cristais transfigurados
vem a brisa que edifica a lágrima
vêm os dardos que demarcam
o sol da resistência
o sal da existência.
Não se chega à transfiguração sem antes passar pela desolação, pelas incertezas, porque sol e sal se fecham no horizonte da existência. Não sem forte motivo, o poema que se segue, intitula-se O desguardador de dores, pois as dores são inerentes à condição humana; fazem parte do processo por que o homem tem de passar para abandonar seu estado de ente e ascender ao estado de ser. Mas, à semelhança do veleiro que vence ondas, não se trata de dores definitivas; mas de um obstáculos a serem vencidos que, uma vez debelados, sedem espaço para a enlevos, para momentos de descontração, como verificamos no poema seguinte, Enlevo.
Mas, como a existência e a poesia se fazem nos limites da condição humana, a travessia para o sublime, entendido como supremo enlevo e como suprema transfiguração do humano, ambos se compõem nas linhas silenciosas da linguagem e do ser. As imagens relacionadas à viagem, mesmo variando entre náuticas e urânicas, persistem na conformação dos poemas, pois materializam um dos modos de ser da dor metafísica: a angústia, como a vemos no poema Contemplador de silêncios, em que os silêncios se dividem entre a precariedade do ser e a necessidade de compor o poético. Esse eterno vir a ser, numa espécie de existência dupla, se converte em avanços e recuos, em derrotas e vitórias, que tendem a viger sempre nessa viagem atravancada:
V.
ante a libido esfarelada da emoção
e a pulsão das estranhezas reveladas
ele queima a carta de despedida
vai ao espelho
recolhe a lágrima banal e insana
reprime o transgressivo grito
desmelancoliza-se
reordena o seu vir-a-ser
e renova-se em estado de silêncio...
Não sem razão, este estado de ser em transformação é revelado por intermédio de imagens eróticas ─ libido esfarelada e pulsão ─, pois, o erótico, além de constituir a última forma de o homem revelar a sua liberdade, é também, e sobretudo, uma forma de conformar seu estado de ser em dimensões metafísicas, como bem o dissera Schopenhauer. Como essa viagem de ser é empreendida por poucos, ela implica transgredir, inclusive o grito, que seria a forma mais violenta de o ser revelar-se, mesmo que ele seja reprimido, porque o ser se engole, procede a uma autofagia, não para se esconder, mas para reordenar-se, para renovar-se em estado de silêncio, que é a maneira mais profunda de refazer-se e de revelar-se.
Essa viagem de poesia, entendida como diálogo do ser com a essência, e do homem à procura da substância do humano, evidencia-se nos poemas que compõem o tecido interno do livro, à medida que cada um deles apresenta aspectos específicos da condição humana. Consoante essa perspectiva, o poema (I)mundana trilha, erigido a partir de palavras bíblicas, mostra os caminhos tortos escolhidos pela humanidade, que prefere o terror de existir à paz, que deveria constituir a verdadeira dimensão metafísica do humano. A inversão dos valores, sem dúvida, revela o lado verdadeiro da humanidade, ao ponto de o homem, em condições apenas ônticas, em estado de objeto, portanto, valorar apenas o que, na verdade, não agrega valor algum a si mesmo e, em decorrência, não contribui para a conquista da essência. É a chamada alienação, responsável direta pela fato de a maioria da humanidade não se colocar em travessia para o estado de ser, para a dimensão metafísica e a decorrente transfiguração do humano.
Se as definições de poesia encontradas no percurso da viagem desses veleiros mostram os dois lados da existência, a derrota e a vitória, como vemos, por exemplo, ao final dos poemas De onde vem a poesia... e A poesia, do mesmo modo, mostram que existência e poesia são inseparáveis. Não sem razão, a maioria dos poemas, para materializar a imensidão do existir em direção ao ser e sua essência e a imensidão da poesia desse ser convertido em linguagem, apresenta-se sem pontuação, a fim de que o fluxo da viagem não se interrompa, porquanto a essência se adquire no constante da existência. Esse recurso estilístico-semântico, além de revelar-se eficiente, porque estabelece uma interação perfeita entre a dimensão ontológica do ser e o discurso, que é sua matéria e sua forma, ainda eleva a linguagem à esfera do metafísico, já que a essência só pode ser revelada mediante sinais, signos e símbolos responsáveis pelo caráter ontológico do discurso e da linguagem que o informa e o conforma.
Essência e forma
Não sem razão, Octavio Paz disse que a imagem é a cifra da condição humana, porque, no momento em que ela funde essências de palavras para criar e recriar o sentido, confere, também, uma nova essência à realidade possível penas no discurso poético. É consoante essa percepção do fazer poesia, que a palavra poética carrega em sua etimologia, que Rubênio Marcelo, recria e conjuga verbos e essências, palavras e linguagens, para transformar o real em imaginário e o imaginário, em real. Assim, se a imagem dos veleiros encerra um caráter metafísico, à medida que materializa, de forma simbólica, a viagem existencial do ser homem e do ser lírico e, também, a viagem do leitor pelos poemas que compõem o livro, não sem sentido, os poemas finais do livro se erigem mediante o concurso de imagens sinfônicas, musicais, porque a música, além de elevar o ser ao sublime, naquela sentido mesmo de transcendência, ainda o insere na essência mesma do imaginário, porque eleva e enleva o espírito, entendido como substância superior, infinita, do humano. Não sem forte razão, um dos poemas finais empresta o título aos Noturnos, de Chopin, a fim de que se proceda a uma interação entre as duas artes mais transcendentes, a poesia e a música, e insira o ser do homem na dimensão metafísica, na transfiguração, naquele sentido do sagrado, uma vez que se passou pela travessia e se encontrou com a essência, com a substância do humano.
O ato de ouvir o Noturno, em movimento Mi Bemol Maior, permite que ocorra uma espécie de simbiose entre o ser lírico e a música, tanto que ela o leva à poesia, a revelar-se em linguagem. O Mi, nesse caso, além de ser a nota música, é, também, o ser do poeta, aquela parte que se funde ao eu, como ocorria na metafísica egípcia dos hieróglifos, e compõe a essência do ser lírico. Exatamente por isso é também noturno, porque em estado que precede à criação e à revelação, que seria a complementação dos lados da essência, o Mi e o eu. Essa imagem se complementa no Bemol Maior, que é a passagem do silêncio para a música, ou do noturno para a luz, uma vez que ainda não se está completo, vez que o soneto é de amor, ou seja, soma do eu e do tu, pois o noturno só tem razão de ser com o advento da luz, isto é, da essência, confirmada no ímpeto essencial que o leva à escritura, quase que sagrada do texto poético:
Assim,
em ímpeto essencial,
imaginei-me escrevendo
um soneto de amor...
Entretanto, apesar da fusão com a música, o ser lírico, como todo ser de humanidade, revela-se incompleto. Por isso, completa-se em avanços e recuos que compreendem o arquetípico eterno retorno, porque, parodiando Guimarães Rosa, o ser, existindo e sendo, é dentro da gente. É justamente por isso que os poemas, em sua maioria, se compõem sem pontuação, mormente o chamado ponto final, pois a sua falta substantiva esse estado de ser veleiro que vai e volta nas águas do si mesmo, materializando o arquétipo da travessia do rio, do mar, do deserto, uma vez que se trata de uma viagem que não leva a nenhuma parte, mas à essência, ao de dentro. É assim percebendo o fenômeno poético que a forma e a fôrma de expressar, de converter o essencial em discurso, que a linguagem se eleva e transcende a palavra, uma vez que todos os signos confluem para substantivar o humano.
Não o fosse, e o livro não se comporia de poemas em versos livres e sonetos, rigidamente compostos, pois, nessa viagem de ser e de poesia, em que interessa exclusivamente a essência, todos os pontos tem de ser representados. Assim, o soneto, em decorrência de sua rigidez, com tonalidade na quarta, oitava e décima sílabas, ou na sexta e décima, objetiva aqueles momentos em que as ondas parecem-se simétricas, harmoniosas. Porém, como também o conteúdo do soneto é revolto, ocorre uma espécie de blefe da forma, já que todo percurso existencial é perigoso, como vemos no soneto Infausta criatura de rua, em que retrata um ente de humanidade em seus limites impostos por outros entes de humanidade:
Ali, naquela esquina ensombreada,
uma senhora idosa estende a mão...
Sem forças, leva a vida na calçada,
haurindo os coquetéis da servidão...
O sistema da vã encruzilhada
do mundo deu-lhe a tal obrigação.
Assim, poucos têm tudo; e muitos, nada;
uns repousam em luxo, outros no chão.
Certamente, queria esta senhora
estar em sua casa a esta hora,
descansando ao sabor de um bom lençol...
Porém, sem condições, vive ao relento,
aceitando, passiva, o sofrimento,
pois este é o país do futebol.
Sintomaticamente, esse soneto se compõe de versos decassílabos heroicos, levando-nos a ver, na forma, uma impiedosa ironia, sobretudo considerando que temos um ser da espécie humana em estado de ente, desprovido de tudo que deveria elevá-lo ao humano. Versos heroicos para converter um ente em estado de objeto, situação imposta pela sociedade, sem dúvida, instala um processo que vai além da ironia: a sátira, bem clara no último verso, chamado chave de ouro. A ironia, que desembocará na sátira, se intensifica, também pela forma, no verso décimo, em que as diéreses que estendem o estado de miséria dessa mulher, como se tornasse o seu sonho irrealizável, porquanto desprovida de um dos elementos constitutivos do humano: o espaço vital, representado pela casa.
Se esse velejar pela condição humana envolve todo processo de conquista da essência pelo ser, ou de derrelição, uma vez que, para se ascender ao ser, implica atendimento às necessidades básicas do existir, como bem o vimos até aqui, o fato de o poeta haver colocado poemas visuais em meio às composições pautadas por imagens verbais, que transformam a essência das palavras, valendo-se de imagens, também verbais, mas auxiliadas por recursos semiológicos, como vela e triângulos, sem dúvida visa a materializar as dificuldades enfrentadas pelos veleiros ao longo do mar existencial. Ao configurarem rochas ou ilhas, eles chamam a atenção do velejador para contornar os perigos do existir ou para a necessidade de atravessá-los de forma a converter a travessia em verdadeira viagem metafísica. Não o fosse e não teria usado a forma de uma vela, para tornar o veleiro real e material, além da expressão cada falso, que sugere, fonicamente, a palavra cadafalso, que enseja a cerimônia da vitória ou a forca, a derrota de quem não ascendeu ao humano. Essa interpretação se confirma, ainda, pelo mastro desse veleiro formar-se com a palavra falso, que pode ser o engano, a mentira, ou a verdade, dependendo do ponto de vista e das ações de quem veleja o existir.
Além disso, o segundo poema visual, intitulado Mesa rendida, ao compor-se meio bustrofedicamente, mostra exatamente esses dois lados da existência, sobretudo se considerarmos que, na verdade, o poema se forma pela expressão mesa redonda, em que a conformação circular, que mostraria o lado perfeito do existir, ao inverter-se, mas sem completar a linha bustrofédica, substantiva as dificuldades para se chegar à perfeição, à conquista da essência. De qualquer modo, como que confirmando esse processo existencial, em que o velejador tem de se precaver, o poema termina com a palavra Amém, uma vez que essa mesa é, justamente, a mesa do sacrifício, das transubstanciações por que o ser tem de passar, sempre.
Dissemos, há pouco, que as rochas podem ser contornadas ou atravessadas. Como esse velejar existencial não leva a nenhuma parte, mas à essência, o veleiro está sempre em viagem. Só atraca, quando o ente se desfizer ou quando o ser se transcender. Exatamente por isso o último poema desse livro-veleiro, desse livro essencial de poemas essenciais, termina com um texto em que o poeta retorna à infância, a fim de mostrar, como que com o dedo, esse eterno velejar, essa eterna viagem que o ser empreende dentro de si mesmo. Não sem forte razão, esse poema se liga a outro, do início do livro, porto e navio, em que o ser lírico se diz rio e mar e navio e porto a caminhar pela própria essência, a proceder uma travessia que o leva à própria substância do humano, simbolizada pela água e pelo veleiro. É justamente por isso que o último poema é composto em um ritmo que lembra o Gonçalves Dias de Y-juca-Pirama, a fim de materializar o ritmo da viagem empreendida pelo veleiro, às vezes segundo as imposições da existência, às vezes segundo imposições alheias à vontade do ser; mas sempre, sempre...
Por esse breve velejar por Veleiros da essência, percebemos, verdadei-ramente, a ambiguidade que o título do livro encerra. Sem dúvida, os veleiros representam a própria humanidade em viagem à substância do humano ou estagnada na própria miséria, sem conseguir ultrapassá-la, uma vez que não se sabe guiar o barco e proceder à travessia para o infinito. Trata-se, portanto, de um livro maduro, de composições puramente estéticas, em que se casam forma e conteúdo. Por isso, um livro pensado, arquitetado, a fim de captar, com profundidade, todas as nuances do ser em existência, e da poesia, em sua essência poética, entendida como diálogo do ser consigo mesmo, porque transformado em linguagem. Não uma linguagem qualquer; mas uma linguagem que ascende à dimensão do metafísico, porque trabalhada desde dentro, desde as essências do Verbo que conjuga o ser. Parabéns, Rubênio, Poeta maiúsculo!
Refúgio do Poeta, 11-12-13
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