SANGUE EM CINZAS DA ÓPERA “O BAMBÚRRIO”
CELESTINO SACHET – DOUTOR EM LETRAS E CRÍTICO LITERÁRIO
Autor de duas dezenas de obras de ficção – conto, novela e romance, testadas pelo público leitor em meia centena de edições, entre 1972 e 2014 –, David Gonçalves é um escritor vitorioso.
Mal entrado nos 20 anos, ele decidiu acampar, literariamente, nos sertões da geografia e nas veredas humanas da sociedade. Nas duas primeiras obras, batizadas Procissão de demônios e Bagaços de gente, o escritor de Jandaia do Sul/PR, há muitos anos instalado em Joinville, alimenta história-estória com personagens movendo-se com demônios transformados em bagaços de uma tragédia grega.
É o que se deduz da leitura, entre outras, das obras Terra braba, 1982; O sol dos trópicos, 1991; Acima do chão, 1992; Os caçadores de aranhas, 1996; O homem que só tinha segunda-feira, 1998; Até sangrar, 2001; Adorável Margarida e outras histórias de bichos, 2002; A princesa e o anjo negro, 2010, todas elas, prenúncio do corajoso romance amazônico Sangue verde, publicado em 2014.
Ao festejar o décimo aniversário de sua atividade no campo da ficção, 1982, portanto, o Autor fecha o Terra Braba com esta devota confissão:
"Nasci em Jandaia, cidade onde há trabalhadores rurais abandonando as terras ou sendo expulsos pela tecnologia. Vivi no meio dos peões, dos boias-frias, aprendendo os difíceis caminhos da vida. Suei juntamente com os trabalhadores, aprendi que a servidão está nos homens de todas as partes. Ainda gosto das modas caipiras, do folclore, da terra que vira homem, do homem que vira terra, sofrendo e amando. A terra dos homens de suor é minha força literária."
Sobre Sangue verde, David não esconde que a obra ficou grande demais. A temática assim exigiu. E o leitor está de acordo. De fato: são 399 páginas, sem espaços em branco entre elas, ou dentro delas, distribuídas em quatro partes, sem títulos, que é para o leitor perceber está dentro da Amazônia. Cada uma das partes carrega pedaços de texto como se fossem as cenas de uma ópera em quatro atos. O emaranhado da floresta, do livro, dos desejos e dos comportamentos humanos em longas fatias do tempo.
Dezenas e dezenas de personagens alimentam uma “ópera do bambúrrio”, significando esta última palavra, na linguagem amazônica, “a descoberta casual do ouro ou de uma pedra preciosa”.
Cheios de esperança-desespero, autores dessa ópera mergulham no garimpo, fugido de um Sul sem horizontes ou escapados de um Nordeste sem água. E, que cada nome um leva às costas: Marcão, Antônio Russo, Zeca Maranhão, Tio Nico, Djalmão, Zé das Trilhas, Gabiroba, Zé Coquinho, peão-capataz de Seu Bambico, senador em Brasília, que decide aplicar terrível castigo ao filho, com o doce nome de Juquinha, só porque o garotão ama a quem não podia amar! E tem mais o Doca, o Genuíno, a mulher Pássaro Azul. Enfim, o imenso coro de uma ópera que se preza.
O Djalmão! Que personagem fantástico!
Quem nada no garimpo? Deixa de besteira, homem! Todos sabem que é o Djalmão. O Nego Djalmão. Pois não sabe? Doca sabe. E muito bem. Aquilo não é homem. É um brutamontes. Um selvagem. Um belzebu. Um capeta. Mas quem manda no Djalmão? Ah, isso todo mundo sabe também. É o Pastor, o ruivo grandalhão, que segura numa mão a Bíblia ensebada e na outra o revólver. Djalmão é o diabo mandado. Quem resolve as coisas complicadas no garimpo? A polícia? O Delegado? O padre? O Pastor? Que nada! É o ferrabrás do Djalmão. Alguém duvida? Ora, ninguém é besta. Lá está o homem. Ele não garimpa. Anda de um lado para outro, gingando o corpão. Para que garimpar? Não é seu ofício. Ele ganha para resolver casos complicados.
Ao longo da ópera, David entra na pele de cada um dos personagens, para convencer o leitor a tornar-se um deles e sentir-se incorporado à fauna humana de um paraíso-inferno, movimentando garimpeiros, fazendeiros, grileiros, pastores, todos devorando a Amazônia, para evitar que ela os devore. Terra onde cada árvore é um cifrão e cada buraco aberto no garimpo, um sonho arrancado com sangue em cinzas.
Doca, autor central da tragédia Greco-amazônica, encontra a pepita de ouro sonhada – e como era grande! Para não vendê-la ou para não ser morto pela inveja dos concorrentes, resolve esconder-se num pedaço da floresta que parece disposta a protegê-lo.
O dono da fortuna e David, o autor do enredo, apresentam ao leitor sua amiga vegetal que ampara os dois:
Por onde mirava, a selva se estendia compacta. Tudo se resumia num aglomerado exuberante, arbitrário e confuso, de troncos e hastes, entremeios de ramaria multiforme, serpenteando em curvas imprevistas, em laçadas largas, em anéis repetidos, fortes e fatais, toda uma vegetação de cipós e parasitas verdes, que deixava intransponível algum trecho.
A Amazônia de David Gonçalves está perdendo muito sangue. Mas ela sobrevive com o pequeno sangue que se mistura com as cinzas das árvores queimadas, com a poeira que se levanta das covas dos garimpos, com o desespero de enriquecer de um povaredo em trânsito!
As matas, os homens e os bichos vivendo para o benefício de ninguém: o garimpo termina – almas, coração e murros explodem. E o pior: Sul e Nordeste rejeitam os filhos que fugiram em busca de pepitas que alimentam a dor, enquanto não são descobertas. E que dobram os problemas, depois de estarem guardadas nas mochilas que se escondem nos restos de floresta adentro.
– Até onde? Até quando?
Na última cena do quarto ato, Doca, o garimpeiro que praticamente abriu a ópera, rói terrível situação: para onde ir, agora que está rico e quando a floresta se desnudar por completo? Agora está rico com a venda da pepita. E se não achar outra? Meu Deus!
Procurando ajustar-se, canta a última ária da ópera:
– Para onde vamos? – pergunta-lhe a mulher que o acompanha.
– Do lado que o vento vai. É a resposta.
Sim, ao sabor do vento, ao encontro da vida. Há coisas que não têm explicação. Do lado que o vento vai, nós estamos indo!
Terminados os versos da ária, os dois embarcam naquele último ônibus que retorna a Cuiabá.
E David Gonçalves, depois que degusta a ária, faz correr as cortinas que fecham a ópera, com esse último aviso:
– Havia na paisagem inóspita, enegrecida pela noite, prenúncios de primavera.
[Última frase de Sangue verde! E, porque não, a primeira frase do próximo romance!]
0 comentários:
Postar um comentário