O PORTUGUÊS FALADO X PORTUGUÊS ESCRITO


O português que a gente fala e o português que nós escrevemos: o perigo da matéria.

A aquisição da fala se dá por meio do contato com outros falantes: ninguém precisa frequentar uma escola para aprender a falar, pois a linguagem é uma capacidade natural do ser humano.

Uma criança inserida em uma comunidade de fala começa, desde cedo, a depreender as regras de funcionamento da sua língua, aplica essas regras em novos contextos e produz generalizações que constroem - ao longo do tempo e paralelamente ao amadurecimento do seu sistema neurológico - sua competência linguística de falante nativo.

O processo de aquisição da escrita é muito diferente: vamos à escola para aprender as primeiras letras, as primeiras sílabas, as primeiras palavras, as primeiras frases. Com o passar do tempo, aumenta a quantidade de palavras que conhecemos e a complexidade dos enunciados com que temos que lidar no cotidiano, e depois de muitos anos de bancos escolares nos tornamos bichos amplamente qualificados a sobreviver em sociedades letradas – ou não!

Essa língua que você conhece desde criança é o aparato de que você dispõe para transferir algo do seu mundo interior para o exterior, é espalhar o seu “eu” para a coletividade, é o irresistível “ir pra galera”. Falamos e escrevemos para dar informações e opiniões, defender ponto de vista, fazer declarações de amor, criar confusão, fazer poesia, dar receitas de bolo para os amigos e mais um monte de outras coisas.

Mas tem um probleminha: o nosso pensamento e o nosso mundo interior são, de maneira geral, um tanto desordenados: pensamos várias coisas simultaneamente, sentimos e lembramos de vários acontecimentos ao mesmo tempo, formamos opiniões e mudamos de ideia o tempo todo... Tudo é muito dinâmico e sobreposto dentro das nossas mentes. Os nossos pensamentos vem e vão em torrentes, mas quando decidimos compartilhá-los por meio da fala ou da escrita temos que criar nexos, selecionar informações e organizá-las no tempo e no espaço, pois as palavras saem por nossas bocas e canetas uma de cada vez, distribuídas linearmente no tempo.

A fala e a escrita compartilham diversas semelhanças, mas também apresentam algumas diferenças bem marcantes. A escrita demanda um planejamento muito mais sofisticado, exige-se que o texto escrito seja mais estruturado, coeso, conciso, enxuto, elegante, instigante, e que tenha mais uma tonelada de atributos, e para isso temos que fazer um trabalho imenso de seleção, distribuição, organização, revisão. Um texto com problemas, mesmo sendo informal tal como um post de Facebook, é duramente criticado e seu autor vira alvo de chacotas; uma fala caótica, pelo menos em situações informais de interação, tende a ser mais tolerada pelas pessoas.

Quando estamos em uma situação de interação oral, dispomos de inúmeros recursos extralinguísticos para prender a atenção do nosso interlocutor: movimentos corporais, gestos, expressões faciais, pausas e ênfases em determinadas palavras ou sílabas, repetições, barulhos, silêncios, enfim, um amplo arsenal de elementos que fazem parte do nosso equipamento comunicativo. A interação oral é um processo dinâmico de cooperação entre pessoas que compartilham um espaço e a cada momento negociam significados, ratificam e retificam suas posições.

A escrita é completamente diferente, primeiro porque, diferentemente da oralidade, ela não é ao vivo e não dispõe dos recursos extralinguísticos da fala. Na escrita, toda a informação tem que estar no texto, você não conta com a cooperação do seu leitor porque ele simplesmente não está alí: o que você escreve vai ser lido mais tarde por alguém que não participou do seu processo de elaboração textual e não contribuiu para o êxito da sua comunicação. Escrever é, de fato, uma tarefa solitária!

Existe na fala uma explicação que pretende dar conta de qualquer problema de entendimento, evocar os perdões e promover o bem estar geral da nação, a tal do “mas não foi isso que eu quis dizer!”. Aí o sujeito se explica, desfaz a bobagem que disse e todos ficam amigos novamente. Na escrita, não há como o leitor saber o que o autor quis escrever, apenas o que ele, de fato, escreveu.

Somos avaliados e julgados ao longo de toda a vida pelas bobagens que falamos e pelos textos que produzimos, mas das bobagens que falamos as pessoas se esquecem, são palavras ao vento, parafraseado “nem-me-lembro-quem-fez-essa-canção”. O texto escrito não, ele tem uma existência material, sólida... Ele fica, para assombrar nossos piores pesadelos!

Então, além daqueles conselhos gratuitos do senso comum, de revisar ortografia, pontuação, concordância, coisa e tal, verifique se o que você quis escrever e o que você escreveu estão combinando, pois consertar uma mancada escrita é bem mais complicado do que deveria ser

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