Maçã do amor - Conto / Odenilde N. Martins


De minha juventude, guardo muitas lembranças, especialmente da praça que ficava no centro da cidade, em frente à rodoviária. Muito democrática, era o point para todas as idades, abria-se para jovens, velhos, ricos e pobres, sem distinção. 

Vinha gente das redondezas para admirar a fonte luminosa, em forma de nave espacial, que jorrava água com as cores do arco-íris. Era um espetáculo e tanto! Não me cansava de apreciá-la. Era bonita demais!

Embaixo da fonte luminosa, uma saleta, dali saía o som que podia ser ouvido de longe, chamando as pessoas para a praça. Pouco antes das dezoito horas, os bancos de cimento já estavam quase todos ocupados. Por ali, circulavam vendedores de pipoca, maçã do amor e outras guloseimas. Quantas vezes não sonhei com o momento em que ouviria meu nome através do alto-falante no exato instante em que recebia uma maçã do amor, oferecida pelo garoto que povoava meus sonhos mais românticos.

Brota de meus lábios um sorriso toda vez que me vêm à cabeça as lembranças daquele tempo. Como não sorrir?

- O que tem essa menina hoje? Tá com espinho nos pés que não para? Te aquieta! Vai cuidar de arrumar a casa. A louça tá na pia te esperando. Dô um jeito já, já nesse bicho-carpin­teiro!

- Mãe, posso ir na praça hoje? Posso? Posso? Por favor, mãe! Todo mundo vai!

- Não sei, vá pedir pro teu pai.

- Teu irmão vai com você – responde meu pai, atendendo meu pedido.

Com essa eu não contava! Meu irmão como guarda-costas! Lá se iam meus planos! Logo agora que eu resolvera agir.

Corri para o quarto para verificar, em meu cofrinho, a quantas estavam minhas finanças. Teria que subornar meu irmão caçula. Mas como afastá-lo da praça? Era preciso planejar! Nada de ficar com rabo preso, pois tudo seria usado por ele para obter o que quisesse de mim!

Por mais que pensasse, não me vinha uma ideia salvadora! Meus planos... eu os via indo por água abaixo. Pense! Pense! A cabeça não funcionava.

Às 18h, o locutor anunciava a Ave Maria, era assim que se enchia de sons a pequena praça. Todos acompanhavam, emocionados, a oração. Em seguida, vinham os anúncios do comércio local entre uma música e outra, que era oferecida por alguém a “alguém muito especial”. 

Meus olhos ansiosos passeavam por todos os cantos, buscando, buscando e... nada! Se ele não viesse, ia demorar muito antes que meu pai permitisse que eu voltasse ali. “Venha, por favor, venha” – apelava para a força do pensamento positivo, mãos e pés suados, gelados, por conta da expectativa.

O tempo estava contra mim, algumas pessoas já se retiravam e nem sinal dele. Já havia gastado boa parte de minhas economias na compra de guloseimas para meu guarda-costas na tentativa de mantê-lo afastado. “Idiota!”- gritava-me uma voz interior –“ Vá pra casa ou quer gastar todo seu dinheirinho com esse pirralho?”

Levantei-me disposta a ir para casa para dar vazão a minha frustração e ira, socando o travesseiro. Há dias que tudo conspira contra a gente, até aquele moleque dos infernos havia sumido, de graça. À medida que o procurava, mais aumentava a irritação. Era só o que me faltava! Parecia que o fedelho tinha evaporado! 

Em brevíssimo tempo, a irritação deu lugar ao pânico. Pensei que o melhor era ir para casa, quem sabe ele tivesse me procurado e, não encontrando, tivesse retornado. Esse pensamento me atingiu como um soco no estômago! Estava frita! Apressei o passo, a estas alturas, meu pai já devia estar em meu encalço. A frustração de meu encontro amoroso sumiu, tinha preocupações muito maiores, como arranjar uma boa desculpa para o fato de meu irmão não ter me encontrado. Era tanta a preocupação que não conseguia sequer organizar as ideias, “o que vou fazer?”

Uma colega de sala de aula me chamou, nem me virei, segui andando rapidamente, tinha ainda, para enfrentar, a escuridão da estrada. Confesso que nunca fui muito corajosa, sempre tive verdadeiro pavor de morcegos, e havia muitos voando por entre as várias árvores frutíferas que ladeavam a trilha que dava acesso a nossa casa.

Há dias que tudo dá errado. Parecia que um urubu tinha pousado em meu ombro. “É muito azar!- resmungava com meus botões, quando, subitamente, fui agarrada pela manga da blusa:

- Algum problema, Otávia? Por que você está correndo? – era minha colega de sala de aula.

- Não consigo encontrar meu irmão.

- Ele está ali, embaixo da mangueira, conversando com o Onofre.

Senti meu rosto queimar, devia estar feito um pimentão maduro! Ali estavam meu irmão e o garoto que eu amava num papo animado com outros rapazotes da turma.

- Preciso ir ao banheiro – disse a minha colega, como pretexto para afastar-me, pois o tempo urgia.

Vinte minutos depois, lá estava eu indo em direção ao grupo de meninos, o coração aos pulos, querendo sair pela boca. Distante deles uns poucos metros, chamei meu irmão.

- Pedro! Pedro!- chamei em vão, pois o som de minha voz foi abafado pelo som do alto-falante que anunciava:

“Em nome da panificadora Doce Beijo, a música a seguir é um oferecimento de “O” para “O” como prova de amor. É mais um coração apaixonado, minha gente!”

Puxei meu irmão pelo braço no exato momento em que a música começou a tocar:

Feche os olhos e sinta
Um beijinho agora
De alguém
Que não vive sem você
Que não pensa
Nem gosta...

Chegou,neste momento, o vendedor de maçã do amor e entregou uma a Onofre, dizendo:” De “O” para “O”.

Os olhares caíram sobre mim como um raio, e ouvi meu irmão dizendo:

- Foi você! De Otávia para Onofre! 

A gargalhada foi geral e o meu amor, que também não passava de um menino, estava mais envergonhado do que eu.

- Não fui não! – a negativa saiu em tom de desespero e o rubor que tomou conta de meu rosto só serviu para confirmar o que todos haviam concluído.

Para meu desalento maior, Onofre jogou a maçã na lixeira e saiu, furioso, acompanhado por um coro de risadas. Maldita ideia! Havia estragado tudo e ainda tornara o rapaz motivo de chacotas.

O trajeto até em casa nunca me pareceu tão longo, meu irmão foi imitando o locutor e cantando a música o tempo todo e quanto mais eu me defendia, mais parecia culpada. Sabia que o pior ainda estava por vir.

Eu e Pedro dividíamos pequenos trabalhos domésticos, revezando-nos na limpeza do quintal, arrumação da cozinha e outras coisinhas mais. Meu tormento começou na manhã seguinte.

- Quero essa cozinha arrumada logo. Ouviu Pedro?-intimou minha mãe, pois sabia que era um trabalho fazer o pirralho se mexer.

O moleque limitou-se a dizer:

- De “O” para “O”- e começou a cantar:

“Feche os olhos e sinta
O meu beijinho agora...”

Pronto! Tinha começado a chantagem!

- Deixa que eu lavo a louça e arrumo a cozinha, mãe.

Ela olhou meio desconfiada, mas não disse nada. E assim foi-se o fim de semana, comigo fazendo o meu trabalho e o de meu irmão.

Na segunda-feira, no momento em que entrei na sala de aula, fui saudada por um coro:

“Feche os olhos e sinta
O meu beijinho agora...”

Um dos garotos levantou e dirigiu-se ao Onofre, imitando o vendedor de maçã do amor: “De “O” para “O”.” Queria que, naquele momento, o chão se abrisse e me tragasse. Fiquei feito estátua, parada no meio da sala, até que a professora ordenou que eu me sentasse. Que manhã longa! Fui a diversão da escola toda e ainda precisei suportar os olhares de raiva que me eram dirigidos por Onofre, que também se tornara alvo dos deboches.

Em casa, a escravidão que meu irmão me impunha, durou até o dia em que minha mãe me pegou fazendo as tarefas escolares dele. 

- Não tem greguê pra dizer Gregório, agora vocês dois vão me contar tudo ou a cinta vai pegar parelho.

E Pedro contou o que tinha acontecido, sem poupar detalhes, inclusive as piadas na escola.

- Você vai fazer todo o serviço por dois meses, que é pra aprender que não deve se aproveitar do erro de ninguém – disse ela a Pedro, - E você, até o final do ano, não bota os pés fora de casa, a não ser pra ir pra escola.

Ambos até esboçamos um protesto que foi imediatamente calado pelo olhar ameaçador de nosso pai.

O garoto que eu amava passou a me detestar, por vários dias servi de capacho de meu irmão, o castigo foi bastante longo e ainda carreguei por muito tempo o apelido de “Maçã do amor”. Custou-me caro por demais aquela ousadia amorosa.


Odenilde N. Martins





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