GONÇALVES DIAS



Amor! Delírio - Engano

Amor! delírio — engano... Sobre a terra

Amor também fruí; a vida inteira

Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.

Amei! — dedicação, ternura, extremos

Cismou meu coração, cismou minha alma,

— Minha alma que na taça da ventura

Vida breve d'amor sorveu gostosa.

Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata

Oásis, paraíso, éden ou templo

Habitamos uma hora; e logo o tempo

Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,

Doce encanto que o amor nos fabricara.


E eu sempre a via!... quer nas nuvens d'oiro,

Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,

Ou quer na branca nuvem que velava

O círculo da lua, — quer no manto

D'alvacenta neblina que baixava

Sobre as folhas do bosque, muda e grave,

Da tarde no cair; nos céus, na terra,

A ela, a ela só, viam meus olhos.


Seu nome, sua voz — ouvia eu sempre;

Ouvia-os no gemer da parda rola,

No trépido correr da veia argêntea,

No respirar da brisa, no sussurro

Do arvoredo frondoso, na harmonia

Dos astros inefável; — o seu nome!

Nos fugitivos sons de alguma frauta,

Que da noite o silêncio realçavam,

Os ares e a amplidão divinizando,

Ouviam meus ouvidos; e de ouvi-lo

Arfava de prazer meu peito ardente.


Ah! quantas vezes, quantas! junto dela

Não senti sua mão tremer na minha;

Não lhe escutei um lânguido suspiro,

Que vinha lá do peito à flor dos lábios

Deslizar-se e morrer?! Dos seus cabelos

A mágica fragrância respirando,

Escutando-lhe a voz doce e pausada,

Mil venturas colhi dos lábios dela,

Que instantes de prazer me futuravam.

Cada sorriso seu era uma esperança,

E cada esperança enlouquecer de amores.



E eu amei tanto! — Oh! não! não hão de os homens

Saber que amor, à ingrata, havia eu dado;

Que afetos melindrosos, que em meu peito

Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!

Oh! — não, — morra comigo o meu segredo;

Rebelde o coração murmure embora.



Que de vezes, pensando a sós comigo,

Não disse eu entre mim: — Anjo formoso,

Da minha vida que farei, se acaso

Faltar-me o teu amor um só instante;

— Eu que só vivo por te amar, que apenas

O que sinto por ti a custo exprimo?

No mundo que farei, como estrangeiro

Pelas vagas cruéis à praia inóspita

Exânime arrojado? — Eu, que isto disse,

Existo e penso — e não morri, — não morro

Do que outrora senti, do que ora sinto,

De pensar nela, de a rever em sonhos,

Do que fui, do que sou e ser podia!


Existo; e ela de mim jaz esquecida!

Esquecida talvez de amor tamanho,

Derramando talvez noutros ouvidos

Frases doces de amor, que dos seus lábios

Tantas vezes ouvi, — que tantas vezes

Em êxtase divino aos céus me alçaram,

— Que dando à terra ingrata o que era terra

Minha alma além das nuvens transportaram.

Existo! como outrora, no meu peito

Férvido o coração pular sentindo,

Todo o fogo da vida derramando

Em queixas mulheris, em moles versos.

E ela!... ela talvez nos braços doutrem

Com sua vida alimenta uma outra vida,


Com o seu coração o de outro amante,

Que mais feliz do que eu, infemo! a goza.

Ela, que eu respeitei, que eu venerava

Como a relíquia santa! — a quem meus olhos,

Receando ofendê-la, tantas vezes

De castos e de humildes se abaixaram!

Ela, perante quem sentia eu presa

A voz nos lábios e a paixão no peito!

Ela, ídolo meu, a quem o orgulho,

A força d'homem, o sentir, vontade

Própria e minha dediquei, — sujeita

À voz de alguém que não sou eu, — desperta,

Talvez no instante em que de mim se lembra,

Por um ósculo frio, por carícias

Devidas dum esposo!...

Oh! não poder-te,

Abutre roedor, cruel ciúme,

Tua funda raiz e a imagem dela

No peito em sangue espedaçar raivoso!

Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora,

Em que ela só julgar-se, hás de escutar-lhe

Um quebrado suspiro do imo peito,

Que d'eras já passadas se recorda.

Hás de escutá-lo, e ver-lhe a cor do rosto

Enrubescer-se ao deparar contigo!

Presa serás também d'atros cuidados,

Terás ciúme, e sofrerás qual sofro:

Nem menor que o meu mal quero a vingança.

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