O DENTE QUEBRADO - PEDRO EMÍLIO COLL / DA LISTA DOS CEM MELHORES DO MUNDO - REVISTA BRAVO 2009


 O DENTE QUEBRADO - Pedro Emílio Coll 
      Aos doze anos de idade, Juan Pena, brigando com uns moleques de rua, levou uma pedrada num dente; o sangue correu, lavando-lhe o sujo da cara, e o dente partiu-se em forma de serra. Nesse dia começa a idade de ouro de Juan Pena. 
    Com a ponta da língua, Juan passava o tempo a roçar o dente quebrado — o corpo imóvel, o olhar vago, sem pensar. Assim, de rebelde e brigão que era, fez-se calado e manso.
    Os pais de Juan, fartos de ouvir queixas da vizinhança e dos transeuntes — vítimas das perversidades do garoto —, e que haviam esgotado toda espécie de repreensões e castigos, achavam-se agora estupefatos e aflitos com essa transformação. 
    Juan não dizia uma palavra, e passava horas a fio em atitude hierática, como em êxtase, enquanto lá dentro, na escuridão da boca fechada, sua língua acariciava o dente quebrado. Sem pensar. 
    __ Esse menino não anda bem, Paulo — dizia a mãe ao marido.
    __ É preciso chamar o médico. 
   Veio o doutor, grave e pançudo, e fez o diagnóstico: pulso normal, bochechas sanguíneas, excelente apetite, nenhum sintoma de doença. 
    __ Minha senhora — acabou por dizer o sábio, depois de longo exame —, a honestidade da minha pessoa impõe que lhe declare... 
    __ O quê, senhor doutor de minha alma? — interrompeu a angustiada mãe. 
    __ Que seu filho está são como um perro. O que é indiscutível — continuou, em voz misteriosa —, é que estamos em face de um caso fenomenal: seu filho, minha estimável senhora, sofre daquilo a que hoje chamamos o mal de pensar; numa palavra, seu filho é um filósofo precoce, um gênio talvez. 
     Na escuridão da boca, Juan acariciava o seu dente quebrado. Sem pensar. 
    Parentes e amigos fizeram-se eco da opinião do doutor, acolhida com indescritível júbilo pelos pais de Juan. Dentro em pouco, citava--se em toda a cidade o espantoso caso do “menino-prodígio”, e sua fama cresceu como um balão inchado de fumaça. Até o mestre-escola, que sempre o tivera como a cabeça mais lerda deste mundo, submeteu-se à opinião geral, visto que a voz do povo é a voz de Deus. E cada um trazia a confronto o seu exemplo: Demóstenes comia areia; Shakespeare era um malandrinho esfarrapado; Edison etc. 
     Cresceu Juan Pena entre livros abertos diante dos olhos, mas que ele não lia, distraído pela tarefa de sua língua ocupada em tocar a pequena serra do dente quebrado. Sem pensar. 
     E, com o corpo, crescia-lhe a reputação de homem judicioso, sábio e “profundo”, e ninguém se cansava de louvar o talento maravilhoso de Juan. 
      Juan ainda em plena mocidade, e as mais belas mulheres tratando de seduzir e conquistar aquele espírito superior, entregue a fundas meditações, segundo o julgamento de todos, mas que, na escuridão de sua boca, roçava o dente quebrado. Sem pensar. 
      Passaram-se meses e anos, e Juan Pena foi deputado, acadêmico, ministro. E achava-se a pique de ser eleito presidente da República, quando a apoplexia o surpreendeu, acariciando com a ponta da língua o seu dente quebrado. 
      E os sinos dobraram; e foi decretado rigoroso luto nacional; um orador chorou, numa oração fúnebre, em nome da pátria; e caíram rosas e lágrimas sobre o túmulo do grande homem que não tivera tempo de pensar. 
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 10, p. 115)

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