O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS - LIMA BARRETO / DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUDO/REVISTA BRAVO 2009 - 2ª PARTE


     — Estes meus cabelos corridos, duros e grossos, e a minha pele basanée, podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio... Tu sabes que entre nós há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos, de fazer inveja ao mundo inteiro.
      — Bom — fez o meu amigo — continua.
    O velho ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio, e perguntou com doçura:
      — Então está disposto a ensinar-me o javanês?
      — Pois não — a resposta saiu-me sem querer.
    — O senhor há de ficar admirado que eu, nesta idade, queira aprender qualquer coisa, mas...
     — Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos...
      — O que eu quero, meu caro senhor...
      — Castelo — adiantei eu.
     — O que eu quero, meu caro Sr. Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, ao qual tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer, meu avô chamou meu pai e disse-lhe: “Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz”. Meu pai — continuou o velho barão — não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; de uns tempos a esta parte, tenho passado por tantos desgostos, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice, que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis aí.
    Calou-se, e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos, e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos e sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.
    Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto, e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
     Logo informei disso o velho barão. Não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, o velho barão ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.
     Dentro em pouco dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês, e o senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria; aprendia e desaprendia.
     A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça, e julgaram a coisa boa para distraí-lo. Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!...”
    O marido de D. Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão) era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha a que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.
    Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do chronicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos.
     Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava eu, enfim, uma vida regalada.
    Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a causa ao meu javanês; eu estive quase a crê-lo também.
     Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo de que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande quando o doce barão me mandou uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo.
      — Qual! — retrucava ele. — Vá, menino, você sabe javanês!
     Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros, com diversas recomendações. Foi um sucesso. O diretor chamou o chefe de seção:
      — Vejam só, um homem que sabe javanês! Que portento!
     Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses, e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam:
      — Então sabe javanês? É difícil! Não há quem o saiba aqui.
      O tal amanuense que me olhou com ódio acudiu então:
      — É verdade, mas eu sei canaque. O Sr. sabe?
    Disse-lhe que não, e fui à presença do ministro. A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, consertou o pincenê no nariz, e perguntou:
      — Então, sabe javanês?
   Respondi-lhe que sim; e, à pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do pai javanês.
     — Bem, o Sr. não deve ir para a diplomacia. O seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério, e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Linguística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Muller e outros.
    Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.
      O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro, para que o fizesse chegar ao neto quando tivesse a idade conveniente, e fez-me uma deixa no testamento.
      Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias, mas não havia meio! Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Révue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: “Lá vai o sujeito que sabe javanês”. Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber, e recusei uma turma de alunos sequiosos de aprender o tal javanês. A convite da redação, escrevi no “Jornal do Comércio” um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...
      — Como, se tu nada sabias? — interrompeu-me o atento Castro.
     — Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas noções de geografia, e depois citei a mais não poder.
      — E nunca duvidaram?
( LIMA BARRETO, IN:O.PIMENTEL - ANTOLOGIA DE CONTOS - LIVRARIA CULTURAL LTDA, RIO, 1961. )

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