O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS - LIMA BARRETO / DA LISTA DOS CEM MELHORES DO MUNDO / REVISTA BRAVA 2009 - 1ª PARTE


         O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS - Lima Barreto 

    Em uma confeitaria, certa vez, contava eu ao meu amigo Castro as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver.
    Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de médico, para mais confiança obter dos clientes que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
    O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
     — Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
     — Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única — sair de casa a certas horas, voltar a outras — aborrece, não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!
     — Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
    — Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês!
     — Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
     — Não, antes. Por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
     — Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
     — Bebo.
   Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:
     — Eu tinha chegado havia pouco ao Rio, e estava literalmente na miséria. Vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no “Jornal do Comércio” o anúncio seguinte: “Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc...”. Ora — disse cá comigo — está aí uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me.
    Andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os “cadáveres”. Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir, mas entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, decidi pedir a “Grande Enciclopédia”, letra J, a fim de consultar o artigo relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio-polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.
    A enciclopédia dava indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia, e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto e sua pronunciação figurada, e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras.
   Na minha cabeça dançavam hieroglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia esses calungas na areia, para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.
     À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu abecê malaio, e com tanto afinco levei o propósito, que de manhã o sabia perfeitamente.
    Convenci-me de que aquela era a língua mais fácil do mundo, e saí. Mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:
      — Sr. Castelo, quando salda a sua conta?
     — Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...
      — Que diabo vem a ser isso, Sr. Castelo?
      — É língua que se fala lá pelas bandas de Timor. Sabe onde é?
     Oh! Alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida, e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:
     — Eu cá por mim não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Sr. Castelo?
    Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo “Jornal do Comércio” e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia, ou se por ter-me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.
     Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao Dr. Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres de que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo os nomes de alguns autores, e também perguntar e responder “como está o senhor”, além de duas ou três regras de gramática, ilustrando todo esse saber com vinte palavras de léxico.
    Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei, para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil, podes estar certo, aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo. Com maternal carinho, as nossas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza...
     Era uma casa enorme, que parecia deserta. Estava maltratada, mas não sei por que não me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver do que pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam, e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.
   Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.
    Na sala havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam, enquadrados em imensas molduras; e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão. Mas daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...
     Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com um lenço de Alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.
      — Eu sou — avancei — o professor de javanês que o senhor disse precisar.
       — Sente-se — respondeu-me o velho. — O senhor é daqui do Rio?
       — Não, sou de Canavieiras.
       — Como? Fale um pouco mais alto, que sou surdo.
       — Sou de Canavieiras, na Bahia — insisti eu.
       — Onde fez os seus estudos?
       — Em Salvador.
      — E onde aprendeu o javanês? — indagou ele, com aquela teimosia peculiar dos velhos.
      Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara, e com ele eu aprendera o javanês.
      — Ele acreditou? E o seu físico? — perguntou o meu amigo.
( LIMA BARRETO, IN:O. PIMENTEL, ANTOLOGIA DE CONTOS - LIVRARIA CULTURAL LTDA, RIO, 1961.)

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