TRÊS MORTES - LEON TOLSTOI - DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO - REVISTA BRAVO 2009 - ÚLTIMA PARTE + BIOGRAFIA


IV
     Um mês depois erigiu-se um jazigo de pedra sobre a sepultura da morta. Sobre a do cocheiro ainda não havia nenhuma campa, apenas uma relva verde-clara brotava do montículo de terra, único vestígio de um homem que havia passado pela existência.
     — Serioga, tu vai cometer um pecado se não comprar a campa para o Khviédor — disse a cozinheira da estação de posta. — Tu dizia assim: é inverno, é inverno. Mas agora, por que não mantém a palavra? Foi na minha frente que tu prometeu. Ele já veio pedir uma vez, e se tu não compra, ele volta e dessa vez é pra te estrangular.
      — Que nada! Por acaso eu estou recusando?! — respondeu Serioga. — Eu vou comprar a campa; já disse que vou comprar; vou comprar por um rublo e meio. Não me esqueci, mas é que precisa trazer. É só ir na cidade que eu compro.
      — Devia pelo menos colocar uma cruz lá, é isso que você tinha que fazer, — retrucou um velho cocheiro — senão isso vai é acabar mal. As botas tu tá usando, né?
      — E essa cruz, onde é que se vai arranjar? Não dá pra fazer de lenha, né?
      — Isso lá é coisa que se diga? Claro que de lenha não dá pra fazer; tu pega o machado e vai mais cedo pro bosque, e então tu faz. Tu pega e corta um freixo. Ou então tu vai ter que dar vodca ao guarda florestal. Pra toda essa canalha não há bebida que chegue. Faz pouco eu quebrei a trave da carruagem e cortei uma senhora tora e ninguém deu um pio.
      De manhã bem cedo, mal começou a clarear, Serioga pegou o machado e foi para o bosque. Por toda parte estendia-se um manto de orvalho frio e fosco que caía insistente e que o sol não iluminava. O nascente mal começava a clarear, fazendo sua frágil luz refletir no firmamento encoberto por nuvens ralas. Não se mexia um só talo de capim e uma única folha nas copas. Só de quando em quando uns ruídos de asas entre as árvores compactas ou um leve farfalhar pelo chão quebravam o silêncio da mata. De repente, um som estranho, desconhecido da natureza, espalhou-se e congelou na orla do bosque. E de novo ouviu-se o mesmo som que passou a se repetir de forma regular, embaixo, junto ao tronco de uma árvore imóvel. A copa de uma árvore estremeceu de forma incomum; suas folhas viçosas sussurraram algo; uma toutinegra pousada em um galho esvoaçou duas vezes, piando, e pousou em outra árvore, remexendo a caudinha.
     Embaixo, o machado ressoava cada vez mais e mais surdo; as lascas brancas e molhadas de seiva voavam sobre o capim orvalhado, ouvindo-se um leve rangido após os golpes. A árvore estremeceu por inteiro, inclinou-se e aprumou-se rapidamente, vacilando assustada sobre sua raiz. Por um instante, tudo ficou em silêncio; mas a árvore tornou a se inclinar e ouviu-se mais uma vez o rangido de seu tronco; e ela despencou de copa na terra úmida, quebrando e soltando os ramos. Cessaram os sons do machado e dos passos. A toutinegra piou e voou para mais alto. O ramo em que ela roçou suas asas balançou por algum tempo e estacou, como os outros, com todas as suas folhas.
      As árvores, ainda mais alegres, pavoneavam seus galhos imóveis no espaço aberto há pouco.
      Os primeiros raios de sol infiltraram-se por entre as nuvens, brilharam lá no alto e correram a terra e o céu. A neblina derramou-se em ondas pelos vales; o orvalho começou a brincar na relva; nuvenzinhas brancas e transparentes dispersavam-se apressadas pelo firmamento azulado. Os pássaros revoavam sobre a mata espessa e, sem rumo, gorjeavam felizes; folhas viçosas sussurravam radiantes e tranquilas nas copas, e os ramos das árvores vivas mexeram-se lentos, majestosos, sobre a árvore tombada e morta.

Escrito em 1858, extraído do livro "O Diabo e Outras Histórias", Cosac & Naify Edições — São Paulo, 2.000, pág. 29, tradução de Beatriz Morabito e Beatriz P. Ricci, há um narrador exuberante que — num clima de impressionante beleza poética ditada pela natureza — conta a história de três mortes: de uma senhora nobre, de um cocheiro e de uma árvore.


     Leon Nikolaievitch Tolstoi, genial escritor russo, nasceu em 1828 em Iasnaia Poliana. Filho de uma importante família ligada aos Czares, ficou órfão ainda criança. Frequentou a Universidade de Kazan, onde estudou línguas orientais e direito. Em 1847, por herança, tornou-se senhor de vastas terras em Iasnaia-Poliana, daí porquê seja também conhecido por "Conde de Tolstoi". Depois de ter servido no exército, em 1856, viajou pela Europa visitando vários países, regressando então à sua terra natal para administrar suas terras e dedicar-se à literatura. Em 1861, voltou novamente a França para visitar seu irmão que se estava doente, aproveitando para se encontrar com Proudhon. Com uma vida pessoal cheia de conflitos e uma personalidade dividida, Tolstoi aproximou-se, gradualmente, de uma posição pacifista e anarquista, recusando toda forma de governo e poder. Na sua terra natal criou uma escola marcadamente libertária, próxima das experiências de Ferrer e da Escola Moderna, tendo pessoalmente escrito os livros usados nas salas de aula. Seus textos autobiográficos "A Minha Confissão" e "Qual é Minha Fé" foram apreendidos mas, mesmo assim, tiveram ampla difusão clandestina. Perseguido e excomungado pela Igreja, seus últimos anos são de engajamento social. Os escritos filosóficos influenciaram o aparecimento de comunidades e de uma corrente de anarquismo cristão, sobretudo em França, Holanda e EUA. Exerceu também, juntamente com Kropotkin e Thoreau, forte influência sobre um dos mais importantes pacifistas modernos: Gandhi, com quem chegou a manter correspondência. Faleceu em 1910.Tolstoi, profundo pensador social e moral e um dois mais eminentes autores da narrativa realista de todos os tempos, depois das suas primeiras obras — entre outras, as autobiográficas "Infância" (1852) e "Contos de Sebastopol" (1855-1856), baseada em suas experiências na guerra da Criméia —, escreveu "Guerra e paz" (1865-1869) e "Anna Karenina" (1875-1877). Considerado um dos romances mais importantes da história da literatura universal e uma das obras-primas do realismo, "Guerra e paz" é uma visão épica da sociedade russa entre 1805 e 1815. Dela emana uma filosofia extremamente otimista, que atravessa os horrores da guerra e a consciência dos erros da humanidade.
       Entre os romances breves de Tolstoi, o mais importante é "Anna Karenina", um dos melhores romances psicológicos da literatura moderna.
     Em "Uma confissão" (1882), descreve sua crescente confusão espiritual e, após o eloquente ensaio "Amo e criado" (1894), escreveu "Que é a arte?" (1898), no qual condena quase todas as formas de arte, incluindo as próprias obras. Defendeu uma arte inspirada na moral, na qual o artista comunicaria os sentimentos e a consciência religiosa do povo. A partir de então, escreveu numerosos contos breves, sendo o mais conhecido "A morte de Ivan Ilitch" (1886). Outras obras de destaque são: "A sonata de Kreutzer" (1889) e seu último romance, "Ressurreição" (1899).



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