PARTE 10/ OS MORTOS - JAMES JOYCE/ DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO/REVISTA BRAVO 2009


     __ Consegui só um carro - informou ele.
     __ Encontraremos outro pelo cais - disse Gabriel.
     __ Sim. É melhor que a senhora Malins não apanhe uma corrente de ar - comentou tia Kate.
    A senhora Malins foi amparada nos degraus da entrada pelo filho e por Browne e, após várias manobras, içada para dentro do carro. Freddy subiu com ela e gastou longo tempo instalando-a no banco, auxiliado pelos conselhos de Browne. Por fim, acomodaram-na confortavelmente e Freddy convidou Browne a aproveitar a condução. Depois de muita conversa e confusão, Browne também entrou no carro. O cocheiro ajustou a manta sobre os joelhos e curvou-se para saber em que direção seguir. A confusão aumentou. O cocheiro recebia ordens diferentes de Freddy e de Browne, que tinham posto as cabeças fora das respectivas janelas. O problema era decidir em que ponto do caminho deixariam Browne. Da porta, tia Kate, tia Júlia e Mary Jane participavam da discussão com sugestões contraditórias e muito riso. Freddy já não podia falar de tanto rir. Punha e tirava a cabeça da janela a todo momento, arriscando amassar o chapéu, e relatava para a mãe o que ia acontecendo, até que finalmente Browne gritou para o cocheiro desnorteado, abafando as risadas:
     __ Sabe onde fica o Trinity College?
     __ Sim, senhor - disse o cocheiro.
   __ Então vá direto para os portões do Trinity College. Ao chegarmos lã, direi que direção tomar. Compreendeu?
     __ Sim, senhor.
     __ Vá voando para o Trinity College.
     __ Certo, patrão.
    Açoitou o cavalo e o carro partiu vascolejando pelo cais, em meio a um coro de risos e despedidas.
    Gabriel não fora até a porta com os outros. Ficou num recanto escuro do vestíbulo olhando para o alto da escada. Perto do primeiro patamar, também na penumbra, havia uma mulher. Não podia ver-lhe o rosto, mas distinguia as faixas rosa e marrom do vestido, que a sombra transformava em branco e negro. Era sua esposa. Estava encostada no corrimão ouvindo alguma coisa. Surpreso com aquela imobilidade, Gabriel procurou também ouvir. Mas não se escutava nada a não ser o rumor de risos e vozes na entrada, alguns acordes de piano e uma voz de homem cantando.
    Deixou-se ficar na obscuridade do vestíbulo, tentando captar a ária que a voz interpretava e contemplando a mulher. Havia graça e mistério em sua atitude, como se ela fosse uma figura simbólica. Perguntou a si mesmo que simbolizaria uma mulher, imóvel na penumbra de uma escada, ouvindo uma distante melodia. Se fosse pintor, retratá-la-ia naquela postura. O chapéu de feltro azul ressaltaria o bronze de seus cabelos contra o fundo negro e as cores claras do vestido realçariam as cores escuras. Música Distante era o nome que daria ao quadro, se fosse pintor.
     A porta foi fechada e tia Kate, tia Júlia e Mary Jane entraram rindo no vestíbulo.
    __ Freddy não é mesmo terrível? - disse Mary Jane. __ Ele é terrível!
    Gabriel não respondeu e apontou para a escada, onde a esposa se encontrava. Agora, com a porta fechada, a voz e o piano eram ouvidos mais claramente. Gabriel fez um sinal pedindo silêncio. A canção parecia composta em irlandês arcaico e o cantor hesitava na voz e nas palavras. A voz, que a rouquidão do cantor e a distância tomavam plangente, floreava a cadência da ária com palavras que exprimiam tristeza:
        "O, the rain falls on my heavy locks
         And the dew wets rny skin,
         My babe lies cold..."
    __ Oh! - exclamou Mary Jane. __ É Bartell d'Arcy cantando. E ele recusou-se a noite toda. Vou pedir que cante mais uma vez antes de ir embora.
     __Sim, por favor, Mary Jane - disse tia Kate.
    Mary Jane, deixando-as para trás, correu em direção à escada, mas antes que a alcançasse, a música cessou e o piano foi bruscamente fechado.
     __ Oh, que pena! - exclamou. __ Ele vem descendo, Gretta?
     Gabriel ouviu a esposa responder que sim e mover-se em direção a eles. Logo atrás vinham Bartell D'Arcy e a senhorita O'Callaghan.
     __ Oh! Senhor D'Arcy - gritou Mary Jane - não foi muito correto o senhor parar de cantar quando todos nós o ouvíamos enlevados.
     __ Nós o perseguimos a noite toda, a senhora Conroy e eu, mas ele dizia que tivera um terrível resfriado e não podia cantar.
     __ Oh! Senhor D'Arcy - disse tia Kate - está provado que era uma grande mentira.
    __ A senhora não percebe que estou rouco como um corvo? - respondeu ele rudemente.
    Dirigiu-se às pressas para a saleta e vestiu o capote. Os outros, retraídos por sua resposta indelicada, não sabiam o que dizer. Tia Kate franziu a testa e fez um sinal para que o assunto fosse esquecido. Bartell D'Arcy, carrancudo, enrolava cuidadosamente o cachecol no pescoço.
     __ É o tempo - ponderou tia Júlia, após breve silêncio.
     __ É, todo mundo se resfria -, concordou tia Kate, prontamente __ todo mundo.
    __ Dizem - interveio Mary Jane - que há trinta anos não nevava assim e li esta manhã nos jornais que a nevasca é geral em toda a Irlanda.
     __ Adoro olhar a neve - disse tia Kate melancólica.
    __ Eu também - acrescentou a senhorita O'Callaghan. __ Acho que Natal só é Natal quando há neve no chão.
    __ Mas o pobre senhor D'Arcy não gosta de neve - disse tia Kate sorrindo.
    O senhor D' Arcy emergira da saleta todo enrolado e abotoado, e num tom de arrependimento contou-lhes a história de seu resfriado. Todos lhe deram conselhos, disse que era uma judiação, recomendando que protegesse bem a garganta do ar frio da madrugada. Gabriel observava a esposa que não se juntara à conversa. Ela estava sob o lampião empoeirado e a luz do gás inflamava o rico tom castanho de seus cabelos, que Gabriel contemplara enquanto ela os secava ao fogo dias antes. Parecia distante do que sucedia à sua volta e ficara outra vez imóvel. Finalmente, voltou-se para ele e Gabriel viu que havia um rubor em suas faces e que seus olhos brilhavam. Súbito, uma onda de alegria transbordou o coração de Gabriel.
     __ The Lass of Aughrim - respondeu ele. __ Mas não tenho certeza. Por quê? A senhora a conhece?
     __ The Lass of Aughrim - repetiu ela. __ Não conseguia me lembrar.
      __ É uma belíssima ária - disse Mary Jane. __ Lamento que o senhor não estivesse com voz esta noite.
    __ Ora, Mary Jane - observou tia Kate -, não aborreça o senhor d'Arcy. Não quero que o aborreçam.
    Vendo que todos estavam prontos para sair, ela conduziu-os até a porta, onde se despediram:
     __ Bem, boa noite, tia Kate. Muito obrigado por tudo.
     __ Boa noite, Gabriel. Boa noite, Gretta.
    __ Boa noite, tia Kate. Muito, muito obrigada. Boa noite, tia Júlia.
     __ Oh, boa noite, Gretta! Não a tinha visto.
     __ Boa noite, senhor D'Arcy. Boa noite, senhorita O'Callaghan.
     __ Boa noite, senhorita Morkan.
     __ Mais uma vez boa noite.
     __ Boa noite a todos. Bom retorno.
     __ Boa noite. Boa noite.
    O dia ainda não clareara. Uma luz baça pairava sobre as casas e sobre o rio. O céu parecia estar caindo. Havia lama no chão e da neve restavam apenas alguns filetes e flocos nos telhados, nos parapeitos do cais, nas grades dos jardins. Os lampiões ardiam rubramente no ar brumoso e, no outro lado do rio, o Palácio da Justiça recortava-se ameaçador contra o céu sombrio.
    Ela ia à sua frente, ao lado do senhor D'Arcy, com os sapatos, que embrulhara num papel marrom, presos sob o braço, e erguendo com as mãos a barra do vestido para não roçar na lama. Já não havia graça em sua postura, mas os olhos de Gabriel brilhavam ainda de felicidade. O sangue acelerava-se em suas veias e os pensamentos precipitavam-se orgulhosos, ternos, alegres, intrépidos.
    Caminhava tão leve e tão ereta, que sentiu vontade de alcançá-la sem ruído e, agarrando-a pelos ombros, murmurar algo tolo e carinhoso ao ouvido. Parecia-lhe tão frágil que a desejou defender de um perigo qualquer e depois ficar a sós com ela. Momentos de sua vida íntima irromperam como estrelas na memória. Ao lado da xícara de café havia um envelope cor-de-rosa e ele o acariciava com a mão. Pássaros chilreavam nas folhagens e a trama ensolarada da cortina cintilava no assoalho. Não podia comer de tão feliz. Estavam parados na plataforma repleta de gente e ele punha o bilhete na palma tépida de sua mão enluvada. Parados no frio da calçada, espiavam através de uma janela gradeada o homem que soprava garrafas diante de uma fornalha estrepitosa. O frio era intenso. Seu rosto perfumado estava colado ao dele e, subitamente, gritara ao homem da fornalha:
      __ O fogo está quente, amigo?
    Mas o ruído impediu que o homem ouvisse. Melhor assim. Poderia ter respondido mal.
(TRADUÇÃO DE HAMILTON TREVISAN)

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