LEONARDO DA VINCI - FÁBULAS / PARTE 3

A Neve
      No cume de uma montanha muito alta havia uma pedra. E na borda da pedra havia um floco de neve.
      A neve olhou para o Universo em torno e pôs-se a pensar consigo mesma:
      __ As pessoas devem achar que sou convencida e presunçosa, e é verdade! Como pode um pedacinho de neve, um mero floco de neve, como eu, permanecer aqui no alto sem sentir vergonha? Qualquer pessoa que olhe para esta montanha pode ver que todo o resto da neve está mais embaixo. Um pequenino floco de neve, como eu, não tem direito a alturas tão vertiginosas, e chego a merecer que o Sol faça comigo o mesmo que fez ontem com meus companheiros, derretendo-me com um simples olhar. Mas vou escapar á justa ira do Sol descendo para um nível mais apropriado para alguém tão pequeno como eu.
      Ao dizer isto, o pequenino floco de neve, rígido de frio, atirou-se do alto da pedra e rolou para baixo do cume da montanha. Porém quanto mais rolava maior se tornava. Em breve transformou-se numa grande bola de neve e depois em avalanche. Finalmente parou numa colina, e a avalanche era tão grande quanto a colina que ficava por baixo dela.
      E por isso, quando chegou o verão, essa foi a última neve a ser derretida pelo Sol.
          Leonardo da Vinci

A Noz e o Campanário
       Um corvo pegou uma noz e levou-a para o topo de um alto campanário. Segurando a noz com as patas começou a bicá-la para abri-la. Porém subitamente a noz rolou para baixo e desapareceu numa fresta do muro.
      __ Muro, meu bom muro - suplicou a noz, percebendo que estava livre do bico do corvo - pelo amor de Deus, que foi tão bom para você, fazendo-o alto e forte, e enriquecendo-o com esses belos sinos de tão belo som, salve-me, tenha pena de mim! Meu destino era cair entre os velhos ramos de meu pai - prosseguiu a noz - permanecer no rico solo coberto de folhas amarelas. Por favor, não me abandone! Quando eu estava sendo atacada pelo terrível bico daquele corvo feroz, fiz um voto. Prometi que, se Deus me permitisse escapar, eu passaria o resto de minha vida dentro de uma frestinha.
      Os sinos, num doce murmúrio, avisaram o campanário que tomasse cuidado porque a noz podia ser perigosa. Porém o muro, teve compaixão e decidiu abrigá-la, deixando-a ficar onde havia caído.
      Porém dentro em breve a noz começou a abrir e a estender raízes nas frestas da pedra. Em seguida as raízes forçaram caminho por entre os blocos de pedra e surgiram galhos que saíam pela fresta. Os galhos cresceram, tornaram-se mais fortes e estenderam-se para o alto, acima do topo da torre. E as raízes, grossas e enroscadas, começaram a fazer buracos nos muros, empurrando para fora todas as velhas pedras.
      O muro percebeu, tarde demais, que a humildade da noz e seu voto de ficar escondida numa fresta não eram sinceros. E arrependeu-se de não ter dado ouvido aos sinos.
      A nogueira continuou a crescer e o muro, o pobre muro, desmoronou e ruiu.
   Leonardo da Vinci
A Ostra e o Camundongo
      Uma ostra viu-se, juntamente com um grande número de peixes, dentro da casa de um pescador, pouco distante do mar.
      __ Vamos todos morrer - pensou a ostra ao ver seu companheiros espalhados pelo chão, quase asfixiados.
      Um camundongo veio passando.
      __ Escute, camundongo! - disse a ostra - será que você pode fazer favor de me levar para o mar!
      O camundongo olhou para a ostra: era grande e bonita. Devia ser deliciosa.
      __ Certamente - respondeu o camundongo, decidido a comê-la - mas você precisa abrir sua concha, porque assim, fechada desse jeito, não posso carregá-la.
      A ostra abriu cautelosamente a concha e o camundongo imediatamente meteu o focinho para abocanhá-la. Porém, em sua pressa, enfiou demais a cabeça e a ostra fechou-se, prendendo o roedor pelo pescoço. O camundongo deu um grito. Um gato ouviu, veio correndo e devorou-o.
Leonardo da Vinci
A Ostra e o Caranguejo
      Uma ostra estava apaixonada pela Lua. Sempre que a Lua cheia brilhava no céu ela passava horas olhando-a boquiaberta.
      Um caranguejo viu, de seu posto de observação, que durante a Lua cheia a ostra ficava completamente aberta, e decidiu comê-la.
      Na noite seguinte, quando a ostra se abriu, o caranguejo colocou um pedregulho dentro da concha.
      A ostra, imediatamente, tentou fechar-se novamente, porém o pedregulho impediu que assim o fizesse.
Moral da Estória:
      Isso acontece a qualquer pessoa que abra a boca para contar seus segredos. Há sempre um ouvido à escuta.
Leonardo da Vinci
O Lírio
      Nas verdes margens do rio Ticino um belo lírio mantinha-se reto e alvo em sua haste, mirando o reflexo de suas brancas pétalas na água. A água ansiava possuir o lírio.
      A cada ondulação da superfície passava a imagem da linda flor branca. E o desejo da água voltava-se para as ondulações que ainda estavam por vir.
      E assim todo o rio começou a estremecer e a correnteza tornou-se rápida e turbulenta. A água não conseguiu arrancar o lírio, que mantinha-se firme no alto de sua forte haste, e então atirou-se furiosamente contra a margem, que foi arrastada pela inundação.
      E junto com a margem foi-se a linda e solitária flor.
Leonardo da Vinci
A Pulga e o Carneiro
      Certo dia, uma pulga que morava no pelo macio de um cachorro, sentiu um agradável cheiro de lã.
      __ Que será isso?
      Deu um salto e viu que o cachorro adormecera encostado à pele de um carneiro.
      __ Esta pele é exatamente o que preciso - disse a pulga - é mais espessa e mais macia, e principalmente mais segura. Não corro o risco de ser encontrada pelas patas e pelos dentes do cachorro, que a toda hora me procuram. E a pele do carneiro deve ser, certamente, mais agradável.
      Então, sem mais pensar, a pulga mudou-se de casa, saltando das costas do cachorro para a pele do carneiro. Porém a lã era espessa, tão espessa que era difícil atravessá-la para chegar até a pele. Tentou e tornou a tentar, separando pacientemente os fios, procurando laboriosamente um caminho. Finalmente atingiu as raízes dos pelos, mas eles eram tão juntos que ficavam praticamente encostados uns nos outros. A pulga não encontrou sequer um furinho através do qual pudesse atingir a pele do animal.
      Cansada, banhada em suor e profundamente desapontada, a pulga resignou-se a voltar para o cachorro. Porém o cachorro não estava mais lá.
      Pobre pulga! Chorou dias a fio de arrependimento por seu erro.
Leonardo da Vinci

A Raposa e a Pega
      Certo dia uma raposa esfomeada viu-se debaixo de uma árvore sobre a qual estava pousado um bando de barulhentas pegas.
      Escondendo-se para não ser vista, a raposa pôs-se a observar. Notou que os pássaros mantinham-se constantemente em busca de alimento e não temiam sequer pousar sobre cadáveres de animais a fim de bicá-los.
      __ Vou fazer uma experiência - disse a raposa para si mesma.
      Cautelosamente, no maior silêncio, deitou-se no chão e permaneceu imóvel, de boca aberta, como se estivesse morta.
      Breve uma pega a viu e imediatamente voou para o chão.
      Aproximou-se da raposa e, pensando que ela estava morta, pôs-se a bicar-lhe a língua.
      Porém a pega deveria ter sido mais prudente, pois a raposa a apanhou.
         Leonardo da Vinci

A Rede
      Naquele dia, como todos os dias, a rede subiu carregada de peixes. Carpas, barbos, lampreias, trutas, enguias e muitos, muitos outros peixes foram para as cestas dos pescadores.
      Lá no fundo da água do rio, os sobreviventes, assustados e com medo, não ousavam se mexer. Famílias inteiras já haviam sido enviadas para o mercado. Diversos cardumes tinham caído na rede e terminado na frigideira. Que fazer?
      Um grupo de jovens peixes promoveu uma reunião atrás de uma pedra e decidiu se revoltar.
      __ É uma questão de vida ou morte - disseram eles - todos os dias essa rede afunda na água, cada vez num local diferente, para nos aprisionar e nos levar embora de nosso lar. Vai acabar nos matando a todos, e o rio ficará sem peixe algum. Nossos filhos têm direito à vida e precisamos fazer alguma coisa para livrá-los deste flagelo.
      __ E que podemos fazer? - perguntou uma truta que seguira os conspiradores.
      __ Destruir a rede - responderam os outros em coro.
      As enguias encarregaram-se de rapidamente espalhar a notícia dessa corajosa decisão e convocaram todos os peixes para um encontro na manhã seguinte, numa pequena enseada protegida por altos salgueiros.
      No dia seguinte, milhões de peixes de todos os tamanhos e idades reuniram-se para declarar guerra à rede.
      A liderança foi entregue a uma sábia e velha carpa, que por duas vezes conseguira escapar da prisão, mordendo as malhas da rede.
      __ Ouçam com atenção - disse a carpa - a rede é da largura do rio, e todas as malhas têm um chumbo preso por baixo, para que a rede afunde. Dividam-se em dois grupos. Um dos grupos suspenderá os pesos de chumbo e os carregará até a superfície, e o outro segurará as malhas por cima com firmeza. As lampreias vão serrar com os dentes a corda que mantém a rede esticada entre as duas margens. As enguias vão partir já, para fazer uma inspeção e nos informar em que local a rede foi lançada.
      As enguias partiram. Os peixes formaram grupos ao longo das margens. Os barbos encorajavam os mais tímidos, relembrando-lhes o triste fim de tantos amigos e exortando-os a não terem medo de ficarem presos na rede, porque daquele dia em diante nenhum homem seria mais capaz de arrastá-la para a margem.
      As enguias retornaram, missão cumprida. A rede fora lançada a uma milha dali.
Então todos os peixes, como uma frota gigantesca, partiram atrás da velha carpa.
      __ Tomem cuidado - disse a carpa - pois a correnteza pode arrastar vocês para dentro da rede. Sigam devagar e usem bem as nadadeiras.
      E então viram a rede, cinzenta e sinistra.
      Os peixes, acometidos de súbita fúria, nadaram para atacar.
      A rede foi suspensa por baixo, as cordas que a seguravam foram cortadas, as malhas foram rasgadas. Mas os peixes, enfurecidos não largavam mais sua presa. Cada um segurava na boca um pedaço de malha e abanando fortemente as caudas e as nadadeiras, puxavam de todos os lados a fim de rasgar e destruir a rede. E a água parecia estar fervendo enquanto os peixes finalmente libertavam o rio daquele perigo.
Leonardo da Vinci

A Serpente e os Pássaros
      Não havia mais tantos pássaros no bando quanto anteriormente. Cada dia um deles desaparecia misteriosamente, sem ninguém notar como. O líder do bando não conseguia encontrar explicação alguma.
      Certa manhã, em vez de voar na frente, colocou-se em último lugar, a fim de poder vigiar seus companheiros.
      Voaram, como sempre, em direção a uma floresta distante. Ao passarem por cima de uma colina o líder notou que o ordenado bando separou-se, como se atingido por um forte vento. A maioria dos pássaros tornou a formar uma fila ordenada. Porém dois dos mais jovens prosseguiram numa rota diferente, como se atraídos por alguma força invisível.
      E subitamente o líder viu a serpente. Era muito comprida e tinha diversos anéis.
      Todas as manhãs ficava escondida na grama, à espera da passagem do bando. Então abria a boca e aspirava com força, sugando os pássaros para dentro de sua boca.
      Tendo descoberto o perigo, o sábio líder, desse dia em diante, conduziu o bando por outra rota e a serpente nunca mais apanhou nenhum deles.
Leonardo da Vinci

A Toupeira
      Uma toupeira estava passeando em baixo da terra ao longo das longas galerias subterrâneas que sua família havia escavado durante muitos anos de trabalho.
      Andou para a frente e para trás, subiu ao último andar e desceu até o porão como se enxergasse perfeitamente bem. Na realidade, assim como todas as toupeiras, ela tinha olhos muito pequeninos e não via quase nada.
      Finalmente chegou a um caminho que não conhecia e prosseguiu adiante!
      __ Pare! - gritou uma voz vinda do andar inferior - essa galeria conduz ao exterior e é perigosa!
      Porém a toupeira continuou a subir até chegar a um monte de terra.
Levantou o focinho e emergiu. Porém a brilhante luz do Sol cegou-lhe os olhos e ela correu de volta para a escuridão de seu abrigo.
Leonardo da Vinci
As Chamas
      As chamas brilhavam há mais de um mês na fornalha do soprador de vidro, onde eram feitos vidros e garrafas.
      Um dia viram aproximar-se uma vela colocada num castiçal fino e brilhante. Imediatamente, com um desejo ardente, as chamas tentaram aproximar-se da linda vela.
      Uma delas, saltando da brasa que a alimentava, virou-se de costas para a fornalha e, passando através de uma pequenina fresta, atirou-se para cima da vela, devorando-a sofregamente.
      Porém a ávida chama logo consumiu a pobre vela e, não desejando morrer com ela, tentou voltar para a fornalha de onde havia fugido.
Porém não conseguiu desgrudar-se da cera amolecida e, em vão, gritou para as outras chamas, pedindo socorro.
      A chama rebelde transformou-se numa sufocante fumaça, e deixou todas suas irmãs resplandecentes, com a perspectiva de uma vida longa e brilhante.
Leonardo da Vinci


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