TRÊS MORTES - LEON TOLSTOI - DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO - REVISTA BRAVO 2009 - PARTE 3


III
    Chegou a primavera. Nas ruas úmidas da cidade rumorejavam regatos velozes entre o gelo sujo de esterco; as cores dos trajes e o som das vozes dos transeuntes distinguiam-se nitidamente. Nos jardins, atrás das sebes, as árvores inchavam de botões e mal se notava o balançar dos ramos ao sopro da brisa fresca. Por todo lado gotinhas transparentes pingavam... Pardais desajeitados piavam e adejavam com suas asinhas. Nos lados ensolarados, nas sebes, nas casas e nas árvores, tudo se movia e brilhava. Reinava a alegria e o viço tanto no céu e na terra como no coração dos homens.
   Em uma das ruas principais, palha fresca se estendia no chão diante de uma grande casa senhorial; na casa estava aquela mesma doente moribunda que tinha pressa em chegar ao exterior.
    À porta fechada do quarto, o marido da doente e uma senhora idosa. Num divã, um sacerdote, vista baixa, segurando alguma coisa enrolada na estola de seus paramentos.A um canto, uma velha, mãe da doente, chorava com amargura numa poltrona Voltaire. A seu lado, uma criada segurava um lenço, esperando que a velha o pedisse; outra lhe friccionava alguma coisa nas têmporas e soprava por baixo da toquinha a cabeça grisalha.
      — Vá com Cristo, minha amiga, — disse o marido à mulher idosa ao seu lado — ela confia tanto na senhora... a senhora é tão jeitosa com ela, procure convencê-la direitinho, minha querida; vá, vá. — Ele já queria abrir a porta, mas a prima o deteve, passou o lenço algumas vezes nos olhos e sacudiu a cabeça.
      — Agora não parece mais que chorei — disse ela, e abriu a porta, entrando no quarto.
       O marido estava agitadíssimo e parecia completamente perdido. Ia caminhando em direção à velha, mal deu alguns passos, voltou-se, andou pela sala e aproximou-se do sacerdote. Este olhou para ele, levantou os olhos para o céu e suspirou. A barba cerrada, tingida de fios grisalhos, também se ergueu e baixou.
        — Meu Deus, meu Deus! — disse o marido.
       — O que é que se vai fazer? — retrucou suspiroso o padre, e mais uma vez sobrancelhas e barba se ergueram e baixaram.
       — E a mãe dela está aqui! — disse o marido quase em desespero. — Ela não vai suportar isso tudo. Porque amar como ela a ama... não sei, não. Reverendo, se pelo menos o senhor tentasse tranquilizá- la e fazer com que ela saísse daqui...
       O sacerdote levantou-se e aproximou-se da velha.
       — É isso, ninguém pode avaliar um coração de mãe, — disse ele — mas Deus é misericordioso.
       De repente o rosto da velha começou a se contrair cada vez mais e um soluço histérico a sacudiu.
       — Deus é misericordioso — continuou o sacerdote, quando ela se acalmou um pouco. — Em minha paróquia havia um doente muito mais grave que Mária Dmítrievna; e veja o que aconteceu, foi completamente curado com ervas por um homem simples, em pouco tempo. E além do mais, esse mesmo homem está agora em Moscou. Eu disse a Vassili Dmítrievitch que dava para se tentar. Ao menos serviria de consolo para a doente. A Deus nada é impossível.
      — Não, ela não tem mais jeito, — pronunciou a velha — em vez de me levar, é a ela que Deus leva. — E os soluços histéricos tornaram-se tão fortes que ela perdeu os sentidos.
      O marido da enferma cobriu o rosto com as mãos e correu para fora do quarto.
      No corredor, a primeira pessoa que encontrou foi um menino de seis anos, que tentava alcançar a todo custo uma menina menor.
      — E as crianças, não permite que eu as leve para perto da mãe? — perguntou a babá.
     — Não, ela não quer vê-las. Isto a deixaria transtornada. O menino parou um minutinho e examinou atento o rosto do pai; mas, num repente, deu um chute no ar e, com um grito de alegria, continuou a correr.
     — Faz de conta que ela é o cavalo murzelo, papai! — berrou o garoto, apontando para a irmã.
     Enquanto isso, no outro quarto, a prima sentava-se ao lado da doente e conduzia habilmente a conversa, tentando prepará-la para a ideia da morte. Na outra janela, o médico mexia a tisana.
      Metida num roupão branco, cercada de almofadas na cama, a doente olhava calada para a prima.
       — Ah, minha amiga, — disse, interrompendo-a inesperadamente — não precisa me preparar. Não me trate como criança. Eu sou cristã. Eu sei de tudo. Eu sei que minha vida está por um fio; eu sei que se meu marido tivesse me escutado antes, eu estaria na Itália agora e, quem sabe, podia até ser verdade, eu estaria curada. Todos lhe diziam isso. Mas o que se há de fazer? Pelo visto, foi assim que Deus quis. Todos nós temos muitos pecados, eu sei disso; mas espero a graça de Deus, que a tudo perdoa, a tudo perdoa. Eu me esforço para entender, mas tenho muitos pecados, querida. Por outro lado, já sofri bastante. Esforcei-me para suportar com paciência meu sofrimento...
       — Chamo então o padre, querida? Você vai se sentir mais leve comungando — disse a prima.
        A doente baixou a cabeça em sinal de consentimento.
       — Deus, perdoa essa pecadora! — sussurrou. A prima saiu e fez sinal para o padre.
        — É um anjo! — disse ela ao marido, com lágrimas nos olhos.
       O marido começou a chorar; o sacerdote entrou na sala; a velha permanecia desacordada; no quarto principal reinava um silêncio absoluto. Uns cinco minutos depois, o padre saiu do quarto da doente, tirou a estola e ajeitou os cabelos.
        — Graças a Deus, está mais calma agora — disse ele. — Quer vê-los.
       A prima e o marido entraram. A doente fitava um ícone e chorava baixinho.
          — Eu a felicito, minha amiga — disse o marido.
        — Deus seja louvado! Como me sinto bem, agora; uma doçura inexplicável — disse a doente, e um leve sorriso brincou em seus lábios finos. — Como Deus é misericordioso! Não é verdade que ele é misericordioso e onipotente? — E mais uma vez olhou para o ícone com olhos marejados e ávida súplica.
        De repente, pareceu lembrar-se de algo. Fez um sinal para que o marido se aproximasse.
        — Você nunca faz o que eu peço — disse ela com uma voz fraca e descontente.
        O marido esticava o pescoço e escutava-a submisso.
        — O que foi, minha querida?
       — Quantas vezes eu disse que esses médicos não sabem de nada; existem remédios caseiros que curam tudo... Escuta o que o padre disse... o homem simples... Mande buscá-lo.
        — Pra quê, minha querida?
       — Meu Deus, ninguém quer entender!... — E a doente franziu o cenho e fechou os olhos.
       O médico chegou-se a ela e tomou-lhe o pulso. Batia cada vez mais fraco. Ele lançou um olhar para o marido. A senhora percebeu o gesto e olhou à volta assustada.A prima deu-lhe as costas e começou a chorar.
      — Não chore, não aflija a você e a mim — disse a doente. — Assim você tira este meu último sossego.
       — Você é um anjo! — disse a prima, beijando-lhe a mão. — Não, beije aqui, só se beija a mão dos mortos. Meu Deus, meu Deus!
      Na mesma noite, a doente era só corpo, e este corpo jazia no caixão, na sala do casarão. No cômodo espaçoso, a portas fechadas, um sacristão lia salmos de Davi com voz fanhosa e ritmada. A luz viva das velas caía dos altos candelabros de prata sobre a fronte cérea da morta, suas pesadas mãos de cera, sobre as pregas da coberta que delineavam espantosamente os joelhos e os dedos dos pés. Sem entender o que dizia, o sacristão lia de maneira compassada e, no silêncio da sala, as palavras ecoavam estranhas e morriam. De quando em quando, de algum quarto distante chegavam vozes infantis e o barulho do sapateado das crianças.
       "Se ocultas o rosto, eles se perturbam" — anunciou o livro dos Salmos. "Se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados e, assim, renovas a face da terra. A glória do Senhor seja para sempre!"
      O rosto da morta estava severo, calmo, majestoso. Nada se movia, nem na fronte limpa e fria, nem nos lábios cerrados e enrijecidos. Ela era toda atenção. E será que ao menos agora ela compreendia essas grandes palavras?

Escrito em 1858, extraído do livro "O Diabo e Outras Histórias", Cosac & Naify Edições — São Paulo, 2.000, pág. 29, tradução de Beatriz Morabito e Beatriz P. Ricci, há um narrador exuberante que — num clima de impressionante beleza poética ditada pela natureza — conta a história de três mortes: de uma senhora nobre, de um cocheiro e de uma árvore.





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