OS MORTOS - JAMES JOYCE - DA LISTA DOS CEM MELHORES DO MUNDO - REVISTA BRAVO /PARTE 7


OS MORTOS- JAMES JOYCE
    __ Se me permite, senhorita Ivors, acompanhá-la-ei até sua casa. Se é que precisa mesmo ir.
       Ela porém afastou-se, dizendo:
      __ De forma alguma! Pelo amor de Deus, vão para o seu jantar e não se importem comigo. Sei muito bem cuidar de mim mesma.
     __ Mas que ridícula você está sendo, Molly - disse Gretta com franqueza.
     __ Beannacht libh! - gritou Molly lvors, rindo, enquanto descia a escada correndo.
      Mary Jane seguiu-a com o olhar espantado e Gretta curvou-se na balaustrada para certificar-se de que ela se fora. Gabriel perguntava-se se não teria sido ele a causa daquela repentina saída. Entretanto, Molly não parecia mal-humorada; saíra rindo. Ficou olhando pensativo para a escada.
      Nesse instante, tia Kate surgiu da sala de jantar, torcendo as mãos em desespero.
     __ Onde está Gabriel? Onde está ele afinal? Todo mundo esperando lá dentro e ninguém para trinchar o ganso.
     __ Estou aqui, tia Kate! Pronto para trinchar um bando de gansos se for preciso.
   Um ganso gordo e tostado jazia numa ponta da mesa e, na extremidade oposta, num leito de papel enrugado e enfeitado com ramos de salsa, jazia um enorme pernil sem pele, polvilhado com farinha de rosca. O osso estava cuidadosamente envolto com papel. Ao lado do pernil havia uma peça de carne assada. Entre esses dois rivais, estendia-se dupla linha de pratos auxiliares: duas catedrais de geleia uma vermelha, outra amarela; um prato raso cheio de blocos de manjar branco e compota vermelha; uma grande travessa em forma de folha (o cabo imitando caule), com rubros cachos de passas e amêndoas descascadas; outra travessa igual, com um sólido retângulo de figos de Smirna; um prato de creme de leite coberto de noz moscada em pó; uma tigela com chocolates e doces embrulhados em papel prateado dourado, e um copo de cristal com longos talos de aipo. No centro da mesa, como sentinelas da fruteira que sustentava uma pirâmide de laranjas e maçãs americanas, havia dois bojudos garrafões de vinho trabalhado, um com vinho do Porto e outro com xerez. Sobre o piano, em imensa travessa amarela, um pudim esperava. Atrás dele, alinhados segundo a cor dos rótulos, havia três esquadrões de garrafas de cerveja e água mineral: as primeiras de rótulos marrons e vermelhos e as últimas, garrafas menores, com rótulos brancos cruzados por uma faixa verde.
     Gabriel ocupou resolutamente o lugar à cabeceira da mesa e após examinar o corte da faca de trinchar, enterrou com firmeza o garfo na carne do ganso. Sentia-se inteiramente à vontade. Era especialista em trinchar e não havia nada mais agradável para ele que se achar à cabeceira de uma mesa farta.
     __ Senhorita Furlong, que devo lhe dar? - perguntou. __ Uma asa ou um pedaço do peito?
     __ Um pedacinho do peito.
     __ Senhorita Higgins?
     __ Ó, não tenho preferências, senhor Conroy.
    Enquanto Gabriel e a senhorita Daly serviam os pratos com fatias de ganso, carne assada ou pernil, Lily ia de convidado a convidado, com uma travessa de batatas dorée quentes, embrulhadas em guardanapos brancos. Fora ideia de Mary Jane que também sugerira molho de maçã para o ganso. Contudo, tia Kate dissera que o ganso simples sempre fora suficiente e que pedia a Deus nunca comer pior. Mary Jane servia seus alunos, cuidando que recebessem os melhores pedaços, enquanto tia Kate e tia Júlia abriam e traziam do piano garrafas de cerveja para os homens e de água mineral para as mulheres. Havia muita confusão, risos e alarido: alarido de ordens e contra-ordens, de facas e garfos, de rolhas saltando. Assim que terminou a primeira rodada, Gabriel começou a trinchar novas porções, antes mesmo de ter se servido. Todos protestaram e ele acedeu em tomar um bom trago de cerveja, pois o trabalho o deixara com sede. Mary Jane sentara-se para jantar, mas tia Kate e tia Júlia continuavam a correr em volta da mesa, uma nos calcanhares da outra, atrapalhando-se, trocando ordens que nenhuma delas executava. Browne e Gabriel insistiram para que se sentassem, mas elas afirmavam que havia tempo de sobra, de forma que Freddy Malins acabou por se levantar e, capturando tia Kate, depositou-a na cadeira que lhe estava reservada, em meio ao divertimento geral.
      Quando todos haviam sido servidos, Gabriel anunciou sorrindo:
    __ Se alguém quer um pouco mais daquilo que o vulgo chama de estofo, que ele ou ela se pronuncie.
    Um coro de vozes convidou-o a iniciar seu próprio jantar e Lily aproximou-se com três batatas que lhe reservara.
    __ Muito bem - disse Gabriel em tom amável, tomando outro gole de cerveja. __ Peço, então, senhoras e senhores, que esqueçam de mim por alguns minutos.
     Começou a comer sem tomar parte na conversa que encobria o ruído dos pratos que Lily recolhia. O assunto era a companhia de ópera que se apresentava no Teatro Royal. Bartell D'Arcy, o tenor, um jovem moreno com elegante bigode, elogiou enormemente o primeiro contralto. Todavia, a senhorita Furlong achara seu estilo um tanto vulgar. Freddy disse que havia um cantor negro na segunda parte da pantomima Gaiety, que possuía uma das melhores vozes que ele já ouvira.
     __ Você já o ouviu? - perguntou a Bartell D'Arcy, que se achava à sua frente.
      __ Não - respondeu o outro, o tenor, enfastiado.
      __ Gostaria de saber sua opinião sobre ele - continuou Freddy. __ Acho que tem uma grande voz.
     __ É sempre Freddy quem faz as grandes descobertas - disse Browne com familiaridade.
      __ E por que não pode ter boa voz? - retrucou Freddy secamente. __ Só por que ele é negro?
     Ninguém respondeu e Mary Jane procurou levar a conversa para a "legítima" ópera. Uma de suas alunas dera-lhe uma entrada para a representação de Mignon. Sem dúvida fora magnífica, disse ela, mas fizera-a recordar-se da pobre Georgina Burns. Browne lembrava-se de tempos ainda mais remotos; das velhas companhias italianas que costumavam vir a Dublin: Tietjens, Ilma de Murzka, Campanini, o grande Trebelli, Giullini, Ravelli, Aramburo. Naqueles tempos, disse ele, podia-se ouvir em Dublin o que se chama arte de cantar. Contou como a galeria do velho Royal ficava repleta em todas as apresentações e como, certa noite, um tenor italiano bisara cinco vezes o "Deixe-me morrer como um soldado", subindo sempre na escala, e ainda como os rapazes da galeria demonstravam, por vezes, seu entusiasmo, desatrelando os cavalos da carruagem de alguma primma donna e puxando-a eles mesmos pelas ruas até o hotel. "Por que não apresentam mais as grandes óperas antigas?"; perguntou ele. "Dinorah, Lucrezia Borgia? Porque não encontram vozes para interpretá-l-as. Eis a razão".
     __ Ora - replicou Bartell D'Arcy. __ Creio que existem hoje cantores tão bons quanto os de antigamente.
      __ Onde estão? - perguntou Browne em tom de desafio.
     __ Em Londres, Paris, Milão - respondeu o outro com ardor. __ Caruso, por exemplo. Considero-o tão bom, se não melhor, do que todos esses que mencionou.
     __ É possível - disse Browne. __ Porém, ouso afirmar que duvido muito.
     __ Oh, daria tudo para ouvir Caruso cantar! - exclamou Mary Jane.
     __ Para mim - disse tia Kate, que estivera às voltas com um pedaço de osso, __ só existiu um tenor. Do meu gosto, quero dizer. Mas suponho que nenhum de vocês o conheceu.
      __ Quem foi, senhorita Morkan? - perguntou Bartell D'Arcy.
      __ Seu nome era Parkinson. Ouvi-o quando se encontrava em plena glória e penso que possuía a mais pura voz de tenor jamais colocada na garganta de um homem.
      __ Estranho - disse Bartell D'Arcy -, nunca ouvi falar dele.

(TRADUÇÃO DE HAMILTON TREVISAN)

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