OS MORTOS - JAMES JOYCE / DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO REVISTA BRAVO - PARTE 9


    Gabriel olhou para as tias e vendo o imenso sorriso no rosto de tia Júlia e as lágrimas que brotavam dos olhos de tia Kate, apressou--se em concluir. Galantemente, ergueu o copo de vinho, enquanto todos seguravam as taças em expectativa, e disse bem alto:
"Brindemos todas as três. Brindemos por sua saúde, riqueza, longa vida, felicidade e prosperidade; que possam, por muito tempo, desfrutar a invejável posição que conquistaram pelo esforço próprio em suas profissões e o lugar de honra e afeto que têm em nossos corações".
    Todos se levantaram com as taças na mão e voltando-se para as três mulheres, cantaram em uníssono, liderados por Browne:
"Pois elas são alegres companheiras,
Pois elas são alegres companheiras.
Pois elas são alegres companheiras,
Isso ninguém pode negar."
    Tia Kate recorria ostensivamente ao lenço e mesmo tia Júlia parecia comovida. Freddy Malins batia o compasso com o garfo e os cantores olhavam um para o outro como se estivessem melodiosamente conversando, enquanto cantavam com ênfase:
"Sem mentir,
Sem mentir,
     Então, voltando-se novamente para as anfitriãs, repetiram:
Pois elas são alegres companheiras,
Pois elas são alegres companheiras,
Pois elas são alegres companheiras,
Isso ninguém pode negar."
     A aclamação que se seguiu foi acompanhada pelos hóspedes que se encontravam no salão e recomeçada várias vezes. Freddy Malins imitava um maestro, brandindo o garfo no ar.
     O ar cortante da manhã invadia o vestíbulo onde se encontravam, o que fez tia Kate pedir:
     __ Fechem a porta. A senhora Malins vai ficar doente.
     __ Browne está lá fora, tia Kate - disse Mary Jane.
     __ Browne está em toda parte - sussurrou tia Kate.
     Mary Jane riu do seu modo de falar.
   __ Na verdade - comentou ela maliciosamente. __ Ele é muito atencioso.
    __ Intalou-se aqui como um poste - prosseguiu tia Kate sempre em voz baixa, __ durante todo o Natal.
    Desta vez ela própria riu e acrescentou:
   __ Mas diga-lhe que entre e feche a porta. Deus queira que não tenha ouvido.
   Nesse momento a porta se abriu completamente e Browne entrou, rindo com espalhafato. Vestia um comprido capote verde, com golas e punhos de imitação de astracã e trazia na cabeça um boné oval, feito de pele. Apontou para o cais coberto de neve, de onde se ouviu um assobio agudo e prolongado.
      __ Desse jeito Teddy conseguirá todos os carros de Dublin.
     Gabriel veio da saleta, às voltas com seu sobretudo e correndo os olhos pelo vestíbulo, perguntou:
     __ Gretta ainda não desceu?
     __ Ela foi apanhar suas coisas, Gabriel - disse tia Kate.
     __ Quem está tocando lá em cima? indagou Gabriel.
     __ Ninguém. Foram todos embora.
    __ Oh, não, tia Kate! - disse Mary Jane -,__ O senhor Bartell D'Arcy e a senhorita O'Callaghan ainda não saíram.
     __ Em todo caso, alguém está brincando no piano - afirmou Gabriel.
     Mary Jane olhou para Gabriel e para Browne e disse com um estremecimento:
      __ Sinto-me gelada só de vê-los assim agasalhados. Não gostaria de enfrentar a viagem de volta, numa hora desta.
   __ Nada me agradaria tanto neste momento. - disse Browne intrépido, __ Como uma boa caminhada pelo campo ou um passeio veloz de charrete, com um bom trotador entre os varais.
      __ Tínhamos antigamente um bom cavalo e uma charrete em casa - lembrou tia Júlia com tristeza.
      __ O inesquecível Johnny - disse Mary Jane rindo.
      Tia Kate e Gabriel riram.
      __ Por quê? - perguntou Browne. __ Que havia de tão maravilhoso em Johnny?
      __ O saudoso Patrick Morkan, nosso avô - explicou Gabriel, __ em seus últimos anos mais conhecido como "o velho", era um fabricante de cola.
     __ Ora, Gabriel! - disse tia Kate rindo. __ Ele possuía um moinho de amido.
      __ Bem, cola ou amido - prosseguiu Gabriel. __ O velho tinha um cavalo chamado Johnny. E Johnny trabalhava no moinho do velho, girando e girando o dia inteiro. Até aí, tudo bem. Agora vem o lado trágico da história de Johnny. Um belo dia o velho resolveu ir "com a gente importante do lugar" assistir a uma manobra do exército ao parque.
    __ Que o Senhor tenha piedade de sua alma - interveio tia Kate, com fervor.
    __ Amém - respondeu Gabriel. __ Então, como eu dizia, o velho arreou Johnny, pôs a melhor cartola e o melhor colarinho, e saiu pomposamente de sua mansão ancestral nos arredores de Back Lane.
    Todos, até mesmo a senhora Malins, riam dos modos de Gabriel. Tia Kate disse:
    __ Não, Gabriel. Não era em Back Lane que ele vivia. Apenas o moinho ficava lá.
     __ Deixando a mansão de seus antepassados - continuou Gabriel - pôs-se a caminho com Johnny. Tudo correu maravilhosamente, até que Johnny topou com a estátua do rei Billy. Ou porque tivesse se apaixonado pelo cavalo do rei Billy, ou porque pensasse que tinha voltado ao moinho, ele começou a andar em volta da estátua.
     Gabriel deu uma volta pelo saguão em meio à hilaridade geral.
    __ E Johnny circulava sem parar. O velho, que era um velho solene, estava muito indignado. "Vamos, senhor! Que é que você pretende, senhor? Johnny! Johnny! Que conduta mais estranha! Não compreendo este cavalo!"
    As risadas que seguiram a demonstração que Gabriel fizera do incidente foram interrompidas por fortes pancadas na porta. Mary Jane correu a abri-la e fez entrar Freddy Malins. Este, como chapéu tombado para trás e os ombros encolhidos de frio, fumegava, ofegante de cansaço.
 (TRADUÇAO DE HAMILTON TREVISAN)

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