Parte 6/ Os Mortos - James Joyce / Da lista dos cem melhores contos do mundo - Revista Bravo - 2009

         OS MORTOS - JAMES JOYCE
       __ Está bem - disse Gabriel.
    __ Logo que terminar a valsa, ela mandará os mais jovens entrarem. Assim teremos a mesa só para nós.
       __ Esteve dançando?
       __ Claro. Não me viu? Que discussão foi aquela com Molly?
       __ Nada. Por quê? Ela falou alguma coisa?
      __ Por alto. Estou tentando conseguir que o senhor D'Arcy cante. Ele é muito convencido, me parece.
      __ Não foi discussão - disse Gabriel irritado. __ Apenas queria que eu fosse a uma viagem pelo oeste da Irlanda e respondi que não iria.
   Gretta deu um pequeno salto para trás e bateu as mãos entusiasmada:
      __ Ô, vamos, Gabriel! Adoraria rever Galway.
      __ Você poderá ir, se quiser - respondeu Gabriel friamente.
     Ela fitou-o por um momento e, voltando-se para a mãe de Freddy, disse:
      __ Eis um marido gentil, senhora Malins.
    Afastou-se em seguida, abrindo caminho através do salão e a senhora Malins, sem se dar conta da interrupção, voltou a falar das belas paisagens e dos lugares pitorescos que havia na Escócia. O genro levava-as todos os anos aos lagos e costumavam pescar. O genro era um magnífico pescador. Certa vez apanhara um peixe enorme e o dono do hotel preparara-o para o jantar.
     Gabriel não a ouvia. Aproximava-se o momento da ceia e novamente o preocupavam as citações do discurso. Ao perceber Freddy Malins atravessando o salão para falar com a mãe, cedeu-lhe a cadeira e retirou-se para perto da janela O salão estava quase vazio e da sala dos fundos vinha o tilintar de pratos e talheres. Os que permaneciam no salão pareciam fatigados pela dança e conversavam calmamente em pequenos grupos. Gabriel tamborilou os dedos trêmulos na vidraça gelada. Como seria agradável caminhar sozinho à beira do rio e depois atravessar o parque! A neve devia ter coberto os galhos das árvores e formado uma capa cintilante sobre o monumento de Wellington. Seria muito melhor estar lá fora do que naquele jantar.
    Relembrou os tópicos do discurso: hospitalidade irlandesa, tristes recordações, as três Graças, Paris, a citação de Browning. Repetiu consigo mesmo a frase que escrevera no artigo: "Sente-se estar ouvindo urna música torturada pelo pensamento". Molly Ivors elogiara-o.
      Teria sido sincera? Será que apesar de todo seu proselitismo, ela teria uma verdadeira vida interior? Até aquela noite, nunca existira animosidade entre eles. Irritava-o pensar que iria encontrá-la à mesa do jantar e que ela o estaria observando com seu olhar crítico e zombeteiro, enquanto discursasse. Talvez nem se importasse em vê-lo fracassar. Mas uma ideia devolveu-lhe a coragem. Iria dizer, referindo-se à tia Kate e tia Júlia: "Senhoras e senhores. A geração que agora declina pode ter tido defeitos, mas de minha parte penso que foi pródiga em hospitalidade, bom humor e compreensão humana, qualidades que à nova geração, muito séria e intelectualizada, parecem faltar". Muito bem. Esta seria para Molly Ivors, Não importava que as tias fossem duas velhotas ignorantes.
      Um rumor de vozes chamou-lhe a atenção. Browne entrava no salão, escoltando galantemente tia Júlia que, apoiada em seu braço, sorria e baixava a cabeça envergonhada. Aplausos irregulares acompanharam-na até o piano, cessando pouco a pouco quando Mary Jane sentou-se na banqueta e ela voltou-se para os convidados, a fim de melhor dirigir-lhes a voz. Gabriel reconheceu o prelúdio. Era uma velha canção de tia Júlia - Pronta para as Bodas. A voz, de tom forte e claro, interpretou com grande talento os trinados que enfeitavam a melodia e, embora cantasse muito rápido, ela não perdia uma única variação tonal. Acompanhar a voz, sem olhar para a cantora, era deixar-se levar num voo leve e seguro. Ao fim da canção, Gabriel juntou-se entusiasticamente aos aplausos que irromperam sonoros, inclusive da sala dos fundos. Soaram tão sinceros que um rubor se apossou do rosto de tia Júlia enquanto ela se curvava para guardar na estante o velho livro de partituras, encadernado em couro e com suas iniciais gravadas na capa. Freddy Malins, que pendera a cabeça para o lado, a fim de ouvi-la melhor, continuou a aplaudir quando todos haviam cessado e falava animadamente com a mãe, que meneava a cabeça em aprovação. Finalmente, quando já não podia mais aplaudir, levantou-se e correu ao encontro de tia Júlia, agarrando-lhe a mão e agitando-a quando as palavras lhe faltavam ou a rouquidão o impedia de falar.
       __ Estava justamente dizendo à mamãe que nunca a vi cantar tão bem. Nunca! Não! Nunca sua voz me pareceu tão boa quanto esta noite. Acredita em mim? É a verdade. Palavra que é verdade. Nunca ouvi sua voz tão fresca, tão clara... Nunca!
    Tua Júlia sorriu satisfeita e murmurou alguma coisa sobre elogios, desvencilhando-se das mãos de Freddy. Browne apontou-a com um gesto largo e disse aos que estavam por perto, à maneira de empresário apresentando um prodígio à plateia:
       __ Senhorita Júlia Morkan. Minha última descoberta.
     Ria gostosamente de sua própria tirada, quando Freddy voltou-se para ele:
     __ Bem, Browne, não sei se está falando sério, mas sua descoberta não poderia ser melhor. O que posso dizer é que nunca a ouvi cantar tão bem desde que venho aqui. E isto é a pura verdade.
      __ Nem eu - concordou Browne. - Acho que sua voz melhorou muito.
        Tia Júlia encolheu os ombros e disse com tímido orgulho:
        __ Há trinta anos minha voz já não era tão má.
        __Adverti muitas vezes - interveio tia Kate - que ela estava se perdendo naquele coral. Mas nunca ouvia meus conselhos.
       Olhou em volta, como que apelando ao bom senso de todos contra a criança desobediente, enquanto tia Júlia fitava o ar, um vago sorriso de recordação brincando em seu rosto.
      __ Não - prosseguiu tia Kate. __ Nunca atendeu a ninguém. Matando-se naquele coral, dia e noite, noite e dia. Às seis da manhã em pleno dia de Natal! E para quê?
      __ Para louvar a Deus, não é, tia Kate? - perguntou Mary Jane sorrindo e fazendo girar a banqueta do piano.
       Tia Kate virou-se indignada para ela:
      __ Sei perfeitamente que se deve louvar a Deus, Mary Jane, mas não acho muito louvável para o Papa despedir as mulheres que devotaram a vida inteira ao coral e substituí-las por molecotes insignificantes. Creio que fez isso para o bem da Igreja. Mas não é justo, Mary Jane, não é direito.
     Tinha se exaltado e prosseguiria na defesa da irmã, pois o assunto lhe era caro, mas Mary Jane, vendo que as moças e rapazes voltavam ao salão, procurou acalmá-la.
        __ Vamos, titia, a senhora está criticando a Igreja perante o senhor Browne que é de outra religião.
      Tia Kate voltou-se para Browne, que sorria da alusão feita à sua crença e disse precipitadamente:
       __ Não estou dizendo que o Papa esteja errado. Sou apenas uma velha tola e não ousaria fazer tal coisa. Mas existem a polidez e a gratidão. Se eu estivesse no lugar de Júlia, teria dito ao próprio Padre Heakey...
      __ E além do mais, titia - acrescentou Mary Jane -, estamos todos famintos e a fome nos torna briguentos.
        __ A sede também - emendou Browne.
      Diante da porta do salão, no patamar, Gabriel encontrou sua esposa e Mary Jane tentando persuadir Molly Ivors a ficar para a ceia. Mas a senhorita Ivors, que pusera o chapéu e abotoava o casaco, não se deixava convencer. Não tinha fome alguma e passara da hora de voltar para casa.
       __ Mas será apenas por dez minutos, Molly - disse Gretta. __ Não irá atrasá-la muito.
      __ Um pratinho só - disse Mary Jane. __ Para se refazer da dança.
        __ Não, não posso mesmo.
     __ Temo que não tenha se divertido - disse Mary Jane desapontada.
      __ Claro que me diverti - respondeu Molly. __ Mas realmente preciso ir embora.
       __ E como vai para casa? - perguntou-lhe a esposa de Gabriel.
       __ Oh, são apenas dois passos daqui.
       Gabriel hesitou um momento.

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