Um fluxo de alegria ainda mais terna brotou-lhe do coração e expandiu-se numa cálida torrente em suas artérias. Como o brilho suave das estrelas, imagens de sua vida em comum, que ninguém conhecia nem jamais viria a conhecer, iluminaram-lhe a memória. Gostaria de recordar-lhe esses momentos, fazê-la esquecer os anos insípidos da vida conjugal e lembrar apenas dos instantes de êxtase. Sentia que nem sua alma nem a dela tinham sido aniquiladas pelos anos. Os filhos, os livros, os trabalhos domésticos não haviam extinto a delicada chama de suas almas. Numa carta que escrevera, ele dissera: "Por que razão as palavras me parecem tão tristes e frias? Será porque não existe palavra bastante suave para ser teu nome?
Como longínqua música, essas frases que escrevera há muitos anos ressurgiam do passado. Queria estar a sós com ela. Quando todos tivessem ido embora, quando se encontrassem no quarto do hotel, ficariam então juntos e sós. Ele a chamaria docemente:
__ Gretta!
Talvez não ouvisse na primeira vez: estaria se despindo. Mas alguma coisa em sua voz a feriria. Voltar-se-ia e olharia para ele...
Na esquina da rua Winetavern encontraram um carro. O ruído das rodas livrava-o de conversar e isso o agradava. Ela olhava pela janela e parecia fatigada. Os outros quase não falavam, apontando vez ou outra uma rua ou edifício. O cavalo galopava penosamente sob o céu nublado da manhã, arrastando sua velha caixa sacolejante e Gabriel estava outra vez no carro com ela, correndo para apanhar o navio, correndo para a lua-de-mel.
Quando atravessaram a Ponte O'Connell, a senhorita O'Callanghan disse:
__ Dizem que a gente nunca passa na Ponte O'Connell sem ver um cavalo branco.
__ Vi um homem de branco desta vez - disse Gabriel.
__ Onde? - perguntou Bartell D'Arcy.
Gabriel apontou para a estátua recoberta de flocos de neve, saudando-a com um gesto:
__ Boa-noite, Dan - disse jocosamente.
O carro parou diante do hotel, Gabriel desceu e, a despeito dos protestos de Bartell D'Arcy, pagou o cocheiro. Deu um xelim de gorjeta. O homem agradeceu e exclamou:
__ Próspero Ano Novo para o senhor!
__ O mesmo para você - respondeu cordialmente Gabriel.
Gretta apoiou-se em seu braço para descer e, quando ainda pisava no estribo, despediu-se dos outros. Repousava de leve no seu braço, com a mesma leveza que ao dançar com ele algumas horas antes. Sentia-se feliz e orgulhoso. Feliz por ela lhe pertencer, orgulhoso de sua graça e madureza. Mas agora, após tantas recordações, o primeiro toque de seu corpo perfumado, estranho e harmonioso, despertou nele uma pungente sensualidade. Envolto no silêncio em que ela se abrigava, Gabriel estreitou-a contra si e enquanto esperavam na porta do hotel, sentiu que haviam escapado da rotina cotidiana, fugido do lar e dos amigos, atirando-se exultantes e ansiosos a uma nova aventura.
Um velho cochilava numa cadeira coberta, no vestíbulo. Ele apanhou um castiçal no balcão e subiu a escada à frente deles. Seguiram-no em silêncio, no tapete espesso que cobri os degraus. Ela subia logo atrás do velho, com a cabeça inclinada, os delicados ombros como que derreados por um peso e o vestido colando-se ao seu corpo. Seria capaz de agarrá-la ali mesmo pela cintura, tanto seus braços tremiam do desejo de envolvê-la, e somente enterrando as unhas nas próprias mãos, pôde conter o impulso que o arrebatava. O velho parou para ajustar a vela gotejante. Eles também pararam, degrau abaixo. No silêncio, Gabriel ouvia as gotas de cera tombando no castiçal e as pancadas do seu próprio coração.
O velho conduziu-os por um longo corredor e abriu uma porta. Então, deixou o castiçal sobre o toucador e perguntou a que horas desejavam ser despertados.
__ Às oito - disse Gabriel.
O velho indicou o comutador da luz elétrica e resmungou uma desculpa, mas Gabriel interrompeu-o:
__ Não queremos luz nenhuma. A que vem da rua já é bastante. Portanto - acrescentou indicando o castiçal. __ Pode levar consigo esse belo objeto.
O velho tornou a pegar o castiçal, mas vagarosamente, pois surpreendera-se com aquela ideia original. Murmurou então boa noite e saiu. Gabriel passou o trinco na porta.
Uma luz pálida projetava-se da rua através da janela até a porta. Gabriel atirou o capote e o chapéu sobre um divã e caminhou para a janela. Ficou olhando para a rua, procurando acalmar um pouco sua emoção. Depois se voltou e se debruçou na cômoda, de costas para a luz. Ela tirara o chapéu, a capa, e estava diante de um grande espelho giratório, desabotoando o vestido. Gabriel contemplou-a por algum tempo e então murmurou: Gretta!
Ela voltou-se lentamente e caminhou para ele ao longo da réstia de luz. Tinha o rosto tão grave e fatigado que Gabriel não conseguiu falar. Não, ainda não era o momento.
__ Parece cansada - disse ele.
__ Um pouco - respondeu ela.
__ Não está se sentindo mal?
__ Não. Cansada. Apenas isso.
Ela aproximou-se da janela e ficou ali, olhando para fora. Gabriel esperou um pouco mais e então, temeroso de que a timidez o dominasse, disse bruscamente:
__ A propósito, Gretta...
__ Quê?
__ Você conhece aquele pobre-diabo, o Malins? - apressou-se em dizer.
__ Sim. Que há com ele?
__ Bem, até que não é mau sujeito - prosseguiu Gabriel num tom falso. __ Devolveu-me o esterlino que eu lhe emprestei. Sinceramente, não esperava mais. Pena que não se afaste daquele Browne, pois não é mau sujeito.
Agora, ele tremia de impaciência. Por que se mostrava ela tão ausente? Não sabia como começar. Estaria aborrecida com alguma coisa? Se ao menos se voltasse ou se aproximasse espontaneamente. Abraçá-la naquele estado seria brutal. Não, primeiro seria preciso vislumbrar alguma paixão em seus olhos. Ansiava por desvendar o enigmático alheamento da esposa.
__ Quando foi que lhe emprestou o dinheiro? - perguntou ela, após uma pausa.
Gabriel conteve-se para não acabar num rude desabafo aquela tola conversa sobre Malins e o dinheiro. Queria gritar-lhe do fundo da alma, estreitá-la contra seu corpo, subjugá-la. Entretanto, respondeu:
__ Oh, no Natal, quando ele abriu aquela lojinha de cartões de boas festas, na rua Henry.
Sentia-se tão dominado pela impaciência e pelo desejo que não a viu afastar-se da janela. Ela ficou um instante parada a sua frente, fitando-o com um olhar estranho. Então, erguendo-se subitamente na ponta dos pés, apoiando de leve as mãos em seus ombros, beijou-o.
__ Você é muito generoso, Gabriel.
Trêmulo de prazer por aquele beijo e pela frase inesperada, Gabriel começou a acariciar-lhe os cabelos, quase sem tocá-los com os dedos. Eram macios e brilhantes. Seu coração transbordava de felicidade. Ela viera espontaneamente, no próprio instante em que ele a desejava. Talvez estivessem pensando as mesmas coisas. Talvez houvesse pressentido o impetuoso desejo que o possuía e por isso se entregara. Agora, que ela se rendera docilmente, admirava-se de ter sido tão tímido.
Segurou sua cabeça entre as mãos e depois deslizando um dos braços em volta de seu corpo, puxou-a para junto de si, dizendo suavemente:
__ Gretta, querida, em que estava pensando?
Ela não respondeu nem se abandonou por completo em seus braços. Tornou a perguntar, brandamente:
__ Conte-me, Gretta. Creio que sei do que se trata. Não sei?
Ela não respondeu imediatamente. Então, numa torrente de lágrimas, murmurou:
__ Estou pensando naquela canção. The Lass of Aughrim.
Libertou-se dele e correu para a cama; agarrando-se às grades, ocultou a cabeça entre os braços. Gabriel ficou paralisado por um momento, perplexo, e depois a seguiu. Ao passar diante do espelho viu-se inteiramente refletido nele: o peitilho da camisa esticado sobre o tórax largo, o rosto cuja expressão sempre o intrigara, os óculos de aros faiscantes. Parou alguns passos longe dela e perguntou:
__ Que há com essa música? Por que a faz chorar?
Ela ergueu a cabeça e enxugou os olhos com as costas da mão como uma criança. Com suavidade maior do que pretendia, Gabriel insistiu:
__ Por que, Gretta?
__ Estou pensando em alguém que, há muitos anos, costumava cantar essa canção.
__ Quem era? - perguntou Gabriel, sorrindo.
__ Alguém que conheci em Galway, quando morava com minha avó.
O sorriso desapareceu do rosto de Gabriel. Uma cólera surda tornou a se condensar no fundo de sua mente e a chama escura do desejo voltou a latejar com fúria em suas veias.
__ Alguém por quem esteve apaixonada? - perguntou em tom sarcástico.
__ Um rapaz que conheci - respondeu ela. __ Chamava-se Michael Furey. Cantava sempre essa canção. The Lass of Aughrin. Era muito sensível.
Gabriel ficou quieto. Não queria deixá-la pensar que estava interessado no tal rapaz sensível.
__ Lembro-me tão bem! Que olhos tinha ele: grandes, castanhos! E que expressão, que expressão!
__ Oh! Então ainda está apaixonada?
__ Passeávamos juntos, quando eu morava em Galway.
Uma ideia atravessou a mente de Gabriel.
__ Suponho que esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta.
__ Queríamo-nos muito bem nesse tempo - respondeu ela.
Sua voz era velada e triste. Percebendo como seria tolo tentar arrastá-la ao que pretendia, Gabriel começou a acariciar-lhe a mão e disse, também com tristeza:
__ E por que morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose, foi?
__ Creio que morreu por minha causa.
Ao ouvir a resposta, um vago terror apossou-se de Gabriel, como se no instante em que esperava triunfar, um ser impalpável e vingativo, reunisse forças em seu mundo obscuro para se levantar e se atirar contra ele. Mas com um esforço da razão afastou esse sentimento e continuou a acariciá-la. Não perguntou mais nada, pois sabia que ela contaria espontaneamente. A mão dela, quente e úmida, não correspondia ao seu afago, mas continuou a acariciá-la, como fizera com a primeira carta naquela manhã de primavera.
__ Foi no inverno - disse ela. __ No princípio do inverno, quando estava para deixar a casa de minha avó e vir para o internato e estava doente na pensão em Galway e não o deixavam sair. Sua família, que morava em Oyghterard, tinha sido avisada. Dizem que definhava, ou algo parecido. Nunca soube ao certo.
Calou-se um momento e suspirou.
__ Pobre rapaz. Gostava tanto de mim e era tio gentil. Passeávamos juntos, sabe, Gabriel, como é costume no interior. Ia estudar canto se sua saúde permitisse. Tinha realmente uma bela voz, pobre Michael Furey.
__ Bem, e daí? - perguntou Gabriel.
__ Então, chegou o dia em que eu devia deixar Galway e vir para o internato. Ele havia piorado tanto que não me permitiram vê-lo. Por isso, escrevi-lhe uma carta dizendo que ia partir para Dublim e retornaria no verão, esperando encontrá-lo bem melhor.
Parou um instante para controlar a voz e prosseguiu:
__ Na noite anterior à partida, estava em casa de minha avó em Nun's Island, arrumando as malas, quando ouvi uma pedra bater na vidraça. Os vidros estavam tão embaçados que não pude ver nada. Desci correndo as escadas, vestida como estava, e dei furtivamente a volta pelos fundos da casa e lá estava o pobre rapaz, num canto do jardim, tiritando de frio.
__ E não o mandou voltar para casa? - perguntou Gabriel.
__ Implorei que o fizesse; disse que a chuva ia matá-lo. Respondeu que não queria viver. Lembro-me tão bem de seus olhos! Tão bem! Estava parado perto do muro onde havia uma árvore.
__ E voltou para casa?
__ Sim. Voltou. E quando fazia apenas uma semana que eu estava no internato, ele morreu e foi enterrado em Oughterar, onde viviam seus parentes. Oh, o dia em que soube que... que estava morto!
Calou-se, sufocada em soluços. Prostrada pela emoção atirou-se na cama com o rosto para baixo, soluçando. Hesitante, Gabriel continuou a segurar-lhe a mão e, então, com pudor de imiscuir-se em sua tristeza, deixou-a cair e caminhou sem ruído até a janela.
Gretta logo adormeceu.
Gabriel debruçou-se na cômoda e contemplou sem ressentimento os seus cabelos emaranhados, a boca entreaberta, ouvindo-lhe a profunda respiração. Então havia esse romance em sua vida: um homem morrera por ela. Quase já não o magoava pensar no pouco que ele, marido, representara em sua vida. Observava-a enquanto dormia, como se nunca houvessem vivido juntos. Seus olhos curiosos fitaram longamente o rosto e os cabelos, e ao pensar em como devia ser ela naquele tempo, no tempo da primeira juventude, uma estranha sincera piedade pela esposa invadiu-lhe a alma. Não ousava dizer, nem para si mesmo, que seu rosto já não era belo, embora soubesse que já não era o rosto pelo qual Michael Furey afrontara a morte.
Talvez não lhe tivesse contado toda a história. Seus olhos moveram-se para a cadeira sobre a qual ela atirara algumas roupas. Um cordel da anágua pendia no chão. Uma bota estava em pé, o cano dobrado para baixo; a outra tombada de lado. Pensou no tumulto que o agitara uma hora antes. De onde surgira aquilo? Da ceia, do tolo discurso, do vinho, da dança, da brincadeira quando se despediam no vestíbulo, do prazer de passear pelo cais sobre a neve? Pobre tia Júlia! Ela também logo seria uma sombra junto às sombras de Patrick Morkan e seu cavalo. Surpreendera esse lúgubre presságio em sua face, quando ela cantava. Muito em breve, talvez, estaria sentado no mesmo salão, vestido de preto, o chapéu de seda sobre os joelhos. Os reposteiros estariam cerrados e tia Kate, sentada a seu lado, chorando e assoando o nariz, contar-lhe-ia como tia Júlia morrera. Revolveria o cérebro à procura de palavras que pudessem consolá-la e só diria frases fúteis e vãs. Sim, isso logo iria acontecer.
O ar gélido do quarto fê-lo estremecer. Deslizou cautelosamente sob as cobertas e acomodou-se ao lado da esposa. Um por um, estavam todos se transformando em sombras. Seria melhor precipitar-se na morte no apogeu de uma paixão, do que extinguir e murchar lentamente com a velhice. Pensou como aquela mulher, adormecida a seu lado, ocultara por tantos anos a imagem do seu amado a afirmar-lhe que não queria viver.
Pranto generoso invadiu-lhe os olhos. Nunca se sentira assim por uma mulher, mas sabia que isto era amor. As lágrimas cresceram nos olhos e ele imaginou ver na penumbra do quarto um jovem parado sob uma árvore encharcado. Outras formas pairavam. Sua alma acercava-se da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências vacilantes e incertas. Ele próprio dissolvia-se num mundo cinzento e incorpóreo. O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se.
Leves batidas fizeram-no voltar-se para a janela. A neve tornava a cair. Olhou sonolento os flocos prateados e negros, que despencavam obliquamente contra a luz do lampião. Era tempo de preparar a viagem para o oeste. Sim, os jornais estavam certos: a neve cobria toda a Irlanda. Caía em todas as partes da sombria planície central, nas montanhas sem árvores, tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nas ondas escuras do cemitério abandonado onde jazia Michael Furey. Amontoava-se nas cruzes tortas e nas lápides, nas hastes do pequeno portão, nos espinhos estéreis. Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente - como se lhes descesse a hora final - sobre todos os vivos e todos os mortos.
(Tradução de Hamilton Trevisan)
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