OS MORTOS - JAMES JOYCE - DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO: REVISTA BRAVO 2009 / PARTE 8


      __ Sim, sim, a senhorita Morkan tem razão - disse Browne. 
     __ Recordo-me de ter ouvido o velho Parkinson, mas é uma época muito remota para mim. 
     __ Um belo, puro, doce e melodioso tenor inglês - disse tia Kate num arrebatamento.
     Quando Gabriel terminou, o enorme pudim foi transferido para a mesa. O tilintar de facas e garfos recomeçou. Gretta cortava grandes fatias do pudim e distribuía os pratos. A meio caminho, eram retidos por Mary Jane que os completava com geleia de framboesa ou de laranja ou com manjar branco e compota. O pudim era da autoria de tia Júlia, que recebia elogios de todos os cantos da mesa. Ela própria, entretanto, achava que não ficara bem dourado. 
      __ Ora, senhorita Morkan- disse Browne, __ espero que eu pelo menos seja bem dourado para a senhora, pois, como sabe, sou todo Brown.     
     Todos os homens, exceto Gabriel, experimentaram o pudim em homenagem à tia Júlia. Como Gabriel não gostava de doces, o aipo fora deixado para ele. Freddy Malins também pegou um talo de aipo e comeu--o junto com o pudim. Tinham-lhe dito que aipo era excelente para o sangue e ele encontrava-se sob cuidados médicos. Sua mãe, que se mantivera calada durante todo o jantar, disse que ele iria passar um mês em Mount Melleray. A conversa, então, passou a girar em torno desse novo assunto. Como era estimulante o clima de Mount Melleray e hospitaleiros os monges que não exigiam um centavo dos hóspedes. 
     __ A senhora quer dizer - perguntou Browne, incrédulo,__ que um sujeito pode ir lá, aboletar-se como se estivesse num hotel, viver à gorda e depois sair sem pagar nada? 
     __ Oh, a maioria das pessoas faz uma doação ao mosteiro, quando vem embora - disse Mary Jane. 
     __ Gostaria que nossa Igreja tivesse uma instituição assim -disse Browne ingenuamente. 
     Ficou admirado ao saber que os monges nunca falavam, levantavam--se às duas da madrugada e dormiam em seus próprios caixões. 
      __ Mas por que isso? - perguntou. 
      __ É o regulamento da Ordem - explicou tia Kate. 
      __ Sim, mas por quê? - insistiu Browne. 
    Tia Kate repetiu que era uma norma deles, nada mais. Browne, porém, parecia não compreender. Freddy Malins explicou-lhe então, o melhor que pôde, que os monges procuravam remir os pecados cometidos por todos os seres humanos. A explicação não foi muito convincente, pois Browne sorriu e disse: 
      __ Aprecio muito a intenção, mas uma confortável cama de molas não teria a mesma eficiência? 
     __ O esquife - disse Mary Jane, __ é para lembrar-lhes do fim inevitável. 
   O assunto tornava-se lúgubre e foi enterrado em repentino silêncio, durante o qual ouviu-se a senhora Malins dizer ao seu vizinho: 
     __ São homens muito bons, os monges, muito piedosos. 
   Passas, amêndoas, figos, maçãs, laranjas, chocolates e doces percorriam a mesa. Tia Júlia convidou todos a beberem vinho ou xerez. A princípio, Bartell D'Arcy recusou ambos, mas alguém, que estava a seu lado, tocou-o com o braço e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Então, consentiu que lhe enchessem o copo. Pouco a pouco, à medida que os copos iam sendo servidos, a conversa cessou. Seguiu-se uma pausa, quebrada apenas pelo borbulhar do vinho e pelo ranger de cadeiras. As três anfitriãs olhavam para a toalha. Alguém tossiu várias vezes, e então, começaram a bater de leve na mesa, pedindo silêncio. Gabriel afastou a cadeira e levantou-se. 
     As batidas na mesa aumentaram, como para encorajá-lo, e depois cessaram completamente. Gabriel apoiou os dedos trêmulos na mesa e sorriu nervosamente para a assistência. Encontrando uma fileira de rostos voltados para ele, ergueu os olhos para o lustre. O piano tocava uma valsa e ele ouvia o farfalhar dos vestidos roçando contra a porta do salão. Algumas pessoas talvez estivessem na neve lá fora, olhando para as janelas iluminadas e ouvindo aquela valsa. Lá o ar era puro. Longe estendia-se o parque, com as árvores pesadas de neve. O monumento a Wellington, coberto com um manto cintilante, faiscava para o oeste sobre o alvo campo dos Quinze Acres. 
     Gabriel principiou: 
     "Senhoras e senhores: 
    Como nos anos anteriores, coube-me esta noite desempenhar uma agradável incumbência, para a qual, todavia, temo serem de todo insuficientes minhas pobres qualidades de orador". 
     __ Não apoiado - exclamou Browne. 
    " Mas, seja como for, somente posso vos pedir que levem em conta a intenção e ouçam-me por alguns momentos, enquanto procuro traduzir em palavras tudo o que sinto nesta noite. Senhoras e senhores, não é a primeira vez que nos reunimos sob este teto acolhedor, em tomo desta mesa acolhedora. Não é a primeira vez que somos alvo - ou, talvez, melhor dizendo, vítimas da hospitalidade de certas amáveis senhoras". Traçou um circulo no ar e fez uma pausa. Todos sorriram para tia Kate, tia Júlia e Mary Jane, que haviam enrubescido de prazer. Gabriel prosseguiu com mais segurança: 
     "Cada ano que passa, convenço-me mais de nenhuma tradição honra tanto nosso país e deve ser zelosamente conservada como a hospitalidade. É uma tradição, pelo menos segundo minha experiência (e não foram poucos os países que visitei), sem paralelo nas nações modernas. Poderão talvez dizer que entre nós ela é antes um defeito do que motivo de orgulho. Todavia, mesmo admitindo-se isso, ela é, para mim, um defeito magnífico que, tenho certeza, será sempre cultivado por todos nós. Enquanto este teto abrigar se amáveis senhoras a quem me referi - e desejo de coração seja por muitos e muitos anos - a tradição genuína e cordial hospitalidade irlandesa, que os antepassados nos legaram e, de nossa parte, devemos legar aos nossos descendentes, continuará viva entre nós." 
     Um murmúrio de entusiástica aprovação percorreu a mesa. Súbito, lembrando-se que Molly Ivors não estava ali e se retirara indelicadamente, Gabriel acrescentou pleno de confiança em si mesmo: 
      "Senhoras e senhores, 
Uma nova geração desenvolve-se em nosso meio. Geração animada por novas idéias e novos princípios. Ela leva a sério e entusiasma-se por essas idéias e seu entusiasmo, mesmo quando mal dirigido, parece-me totalmente sincero. Mas estamos vivendo uma época cética e, se assim posso dizer, torturada pelo pensamento. E por vezes receio que esta nova geração, educada ou supereducada como é, careça da humanidade, hospitalidade e bom humor, que constituíram o apanágio dos tempos antigos. Ouvindo o nome de todos esses grandes cantores do passado pareceu-me, devo confessar, que vivemos numa época mais pobre. Aqueles tempos podem, sem exagero, ser qualificados de espaçosos e se já não voltam mais, esperemos, pelo menos, que em reuniões como esta, recordemo-los com afeto e orgulho e acalentemos em nossos corações a memória desses grandes mortos, cuja glória o mundo não deixará perecer". 
     __ Muito bem! - exclamou Browne. __ Muito bem! 
    "Entretanto - prosseguiu Gabriel, tomando uma inflexão mais suave-, em encontros como este sempre nos ocorrem tristes recordações: lembranças do passado, da juventude, de mudanças, de rostos ausentes cuja falta sentimos. Nossa passagem pela vida é marcada por muitas dessas recordações e se tivéssemos de pensar nelas todo o tempo, não nos sobrariam forças para desempenhar corajosamente nossas tarefas entre os vivos. Todos nós temos deveres e afetos para com os vivos que, com todo direito, reclamam nossa incansável dedicação. 
    Portanto, não me demorarei no passado. Não permitirei que um sermão melancólico venha pesar sobre nós esta noite. Estamos aqui reunidos, livres por um momento do alvoroço e da rotina cotidiana. Encontramo-nos aqui corno amigos, no espírito da verdadeira compreensão, e também, em certo sentido, como colegas no verdadeiro espírito de camaraderie e, na qualidade de hóspedes das - como chamá--las? - das Três Graças do mundo musical de Dublin". 
     Essa alusão provocou aplausos e risos. Em vão, tia Júlia pediu aos seus vizinhos que lhe contassem o que Gabriel havia dito. 
     __ Ele diz que somos as Três Graças - explicou Mary Jane.
    Tia Júlia não compreendeu, mas sorriu para Gabriel que prosseguia no mesmo tom: 
    "Senhoras e senhores: 
     Não me atreverei, nesta noite, a desempenhar a tarefa que coube a Páris em outra ocasião Não ousarei escolher entre elas. Seria incumbência terrível e acima de minhas forças. Pois quando penso em cada uma delas, seja nossa principal anfitriã, cujo bom coração, cujo coração grande demais, tornou-se proverbial para quantos a conhecem; seja sua irmã, que parece dotada de eterna juventude e cuja voz constituiu uma surpresa e uma revelação para todos esta noite; ou por último (mas não em importância) nossa mais jovem anfitriã, talentosa, alegre, dedicada ao trabalho e a melhor das sobrinhas, confesso, senhoras e senhores, não sei a qual delas atribuir o prêmio". 
(TRADUÇÃO DE AMILTON TREVISAN)

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