TRÊS MORTES - LEON TOLSTOI / DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO - REVISTA BRAVO 2009 / PARTE 1


Três mortes
Leon Tolstoi
Escrito em 1858, extraído do livro "O Diabo e Outras Histórias", Cosac & Naify Edições — São Paulo, 2.000, pág. 29, tradução de Beatriz Morabito e Beatriz P. Ricci, conta a história de três mortes: de uma senhora nobre, de um cocheiro e de uma árvore.
I
     Era outono. Pela estrada real duas carruagens seguiam a trote rápido. Na da frente viajavam duas mulheres. Uma, a senhora, magra e pálida. A outra, a criada, gorda e de um corado lustroso. Seus cabelos curtos e ressecados brotavam por baixo do chapéu desbotado, e a mão avermelhada, coberta por uma luva puída, ajeitava-os com gestos bruscos. O busto volumoso, envolto num lenço rústico, transpirava saúde; os olhos negros e vivazes ora espiavam pela janela os campos fugidios, ora observavam timidamente a senhora, ora lançavam olhares inquietos para os cantos da carruagem. A criada tinha bem ao nariz o chapéu da senhora pendurado no bagageiro, um cãozinho deitado nos joelhos, os pés acima dos bauzinhos dispostos no chão, tamborilando sobre eles, em sons quase abafados pelo ruído dos solavancos das molas e do tilintar dos vidros.
     De mãos cruzadas sobre os joelhos e de olhos fechados, a senhora balouçava levemente nas almofadas que lhe serviam de apoio e, com um leve franzir de cenho, dava tossidelas fundas. Tinha na cabeça uma touquinha branca de dormir e um lencinho azul celeste envolto no pescoço pálido e delicado. Uma risca brotava abaixo da touquinha é repartia os cabelos ruços, excessivamente lisos e empastados; havia qualquer coisa de seco e mortiço na brancura do couro daquela vasta risca. A pele murcha, um tanto amarelada, mal conseguia modelar suas feições belas e esguias, que ganhavam um tom vermelho nas maçãs do rosto. Os lábios secos mexiam-se intranquilos  as ralas pestanas não se encrespavam, e o sobretudo de viagem formava rugas entre os seios encovados. Mesmo de olhos fechados, o rosto da senhora expressava cansaço, irritação e um sofrimento que lhe era familiar.
    Recostado em seu banco, o criado cochilava na boleia  o postilhão gritava animado e fustigava a possante quadriga suada; vez por outra espreitava o outro cocheiro, que gritava de trás, da caleça. As marcas paralelas e largas das rodas se estendiam nítidas e iguais pelo calcário lamacento da estrada. O céu estava cinzento e frio; a bruma úmida espalhava-se pelos campos e pela estrada. A carruagem estava abafada e recendia poeira e água-de-colônia. A doente inclinou a cabeça para trás e abriu devagar os olhos, grandes, brilhantes, de uma bela tonalidade escura.
    "Outra vez!" — disse ela, repelindo nervosamente com a mão bonita e magra a ponta da saia da criada, que lhe roçava de leve a perna, e torceu a boca de dor. Matriocha recolheu a saia com ambas as mãos, soergueu as pernas robustas e sentou-se mais afastada. Um corado vivo cobriu-lhe o rosto viçoso. Os belos olhos escuros da doente fitavam ansiosos os movimentos da criada. A senhora apoiou as mãos no banco e quis também soerguer-se para se sentar mais alto, mas faltaram-lhe forças. A boca se contorceu e todo o rosto ficou desfigurado por uma expressão de ironia impotente e malévola. "Pelo menos você devia me ajudar... Ah, não é preciso! Eu mesma faço, só que não ponha atrás de mim essas suas sacolas, faça o favor!... É melhor mesmo que não me toque, já que não leva jeito." A senhora fechou os olhos e mais uma vez ergueu as pálpebras, observando a criada. Matriocha mordia o lábio inferior avermelhado, olhando para ela. O peito da doente exalou um suspiro fundo que, antes de terminar, transformou-se em tosse. Ela se virou, encolheu-se e agarrou-se ao peito com ambas as mãos. Quando a tosse passou, tornou a fechar os olhos e permaneceu sentada sem se mexer. A carruagem e a caleça chegaram à aldeia. Matriocha tirou a mão roliça do lenço e se benzeu.
      — O que é isso? — perguntou a senhora.
      — A estação de posta, senhora.
      — E por que você está se benzendo?
      — Tem uma igreja, senhora.
    A doente voltou-se para a janela e começou a se benzer lentamente, com os olhos bem graúdos fitos numa grande igreja de madeira que a carruagem contornava.
     Os dois veículos pararam em frente à estação. O marido da doente e o médico desceram da caleça e se aproximaram da carruagem.
     — Como a senhora se sente? — perguntou o médico, tomando-lhe o pulso.
     — E então, como está, minha cara, não está cansada? — perguntou o marido em francês. — Não quer descer?
    Matriocha juntou as trouxas e encolheu-se num canto para não atrapalhar a conversa.
    — Mais ou menos... na mesma — respondeu a doente. — Não vou descer.
    O marido foi para a estação, depois de ficar um pouco com a mulher. Matriocha desceu do carro e correu pela lama para a entrada do edifício, nas pontas dos pés.
     — Se eu estou mal, isto não é razão para o senhor não tomar o seu café — disse a senhora, com um leve sorriso, ao médico postado à janela.
     — Nenhum deles se importa comigo — disse consigo mesma, mal o médico se afastou devagarzinho e subiu correndo a escada da estação.— Eles estão bem, o resto não tem importância. Oh, meu Deus!
     — E então, Edvard Ivánovitch? — disse o marido ao encontrar o médico, esfregando as mãos com um sorriso jovial. Ordenei que trouxessem alguma provisão, o que o senhor acha?
      — Pode ser.
     — E ela, como está? — perguntou suspiroso o marido, baixando a voz e levantando as sobrancelhas.
     — Eu disse: ela não vai conseguir chegar, e não só até a Itália: queira Deus que chegue a Moscou. Ainda mais com esse tempo.
    — E o que é que nós vamos fazer? Ah, meu Deus! Meu Deus! — o marido tapou os olhos com as mãos. —Traga aqui — acrescentou ele para o homem que carregava as provisões.
     — Ela deveria ter ficado — respondeu o médico, dando de ombros.
     — Agora me diga, o que é que eu podia fazer? — objetou o marido. — Ora, eu fiz de tudo para detê-la, falei dos recursos, das crianças que nós teríamos de deixar, e dos meus negócios; ela não quer dar ouvidos a nada. Fica fazendo planos de vida no estrangeiro como se estivesse com saúde. E fosse eu falar do seu estado... seria o mesmo que matá-la.
    — Mas ela já está morta, o senhor precisa saber disso, Vassili Dmítritch. Uma pessoa não pode viver quando não tem pulmões, e os pulmões não tornam a crescer. É triste, duro, mas o que se vai fazer? O meu e o seu problema é fazer com que o fim dela seja o mais tranquilo possível. Nós precisamos é de um confessor.
     — Ai meu Deus! Mas o senhor entenda a minha situação na hora de lembrar a ela esta sua última vontade. Aconteça o que acontecer, isso eu não vou dizer a ela. O senhor bem sabe como ela é bondosa...
     — Mesmo assim tente convencê-la a ficar até o final do inverno, — disse o médico, meneando a cabeça com ar expressivo — senão pode acontecer o pior na viagem...
     — Aksiucha! Ei, Aksiucha! — grunhiu a filha do chefe da estação, jogando um lenço sobre a cabeça e pisando no alpendre enlameado nos fundos da casa. — Vamos espiar a senhora de Chirkin, dizem que está doente do peito e que estão levando para o estrangeiro. Eu nunca vi como é uma tísica.
     Aksiucha correu para a soleira da porta e ambas precipitaram-se portão afora de mãos dadas. Encurtando a marcha, passaram diante da carruagem e espiaram através da janela aberta. A doente voltou o rosto para elas mas, percebendo-lhes a curiosidade, franziu o cenho e virou-se para o outro lado.
    — Mm-ãe-zinha! — disse a filha do chefe da posta, voltando rapidamente a cabeça. — Que encanto de beleza deve ter sido; agora vejam o que sobrou dela! Dá até medo. Viu, viu, Aksiucha?
     — Sim, como está mal! — Aksiucha fez coro com a moça. — Vamos dar mais uma olhada, a gente faz que está indo para o poço.Você percebeu? Ela deu as costas, mas eu vi. Que dó, Macha.
     — É, e que lama! — respondeu Macha, e as duas correram para o portão.
     — Pelo visto, estou com uma aparência horrível — pensou a doente. — Eu só preciso chegar mais rápido, mais rápido ao estrangeiro, lá eu me curo.
    — E então, minha cara, como está? — disse o marido, ao se aproximar da carruagem mastigando.
      — A mesma pergunta de sempre. E comendo! — pensou ela. — Mais ou menos... — falou entre dentes.
     — Sabe de uma coisa, minha cara, receio que, com esse tempo, você piore no caminho; Edvard Ivanitch também acha. Não seria o caso de voltar?
      Ela calava, emburrada.
    — Pode ser que o tempo melhore, que a estrada fique boa e que você se recupere; e aí poderíamos ir juntos.
    — Desculpe, mas se por muito tempo não tivesse lhe dado ouvidos, eu estaria agora em Berlim e totalmente curada.
     — Mas o que eu podia fazer, meu anjo? Era impossível, você sabe. Mas agora, se ficasse por um mês, ao menos, iria se recuperar prontamente; eu terminaria meus negócios, levaríamos as crianças...
     — As crianças estão com saúde, eu não.
    — Veja se entende, minha cara, com um tempo desses, se você piorar na viagem... pelo menos você estaria em casa.
     — Em casa, o quê? Pra morrer? — respondeu a doente irritada. 
     Mas a palavra "morrer" pelo visto a assustou, e ela olhou para o marido com ar de súplica e interrogação. Ele baixou o olhar e calou. De repente, a doente fez um beicinho infantil, e lágrimas lhe saltaram dos olhos. O marido cobriu o rosto com o lenço e afastou-se da carruagem.
     "Não, eu vou" — disse a doente, levantando os olhos para o céu, juntando as mãos e murmurando palavras desconexas. "Meu Deus! Por quê?" — dizia ela, e as lágrimas corriam ainda mais intensas. Rezou por muito tempo com ardor, mas no peito, a mesma dor e opressão, no céu, nos campos e na estrada, o mesmo tom cinzento e sombrio, e a mesma bruma de outono, nem mais nem menos rarefeita, derramando-se do mesmo jeito sobre a lama da estrada, os telhados, a carruagem e os tulups dos cocheiros, que discutiam em voz alta, alegres, enquanto lubrificavam e preparavam a carruagem...

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