OS MORTOS - JAMES JOYCE / PARTE 5 / DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO/REVISTA BRAVO 2009


         OS MORTOS - JAMES JOYCE
    Sabia que Mary Jane estava para terminar, pois tocava novamente a melodia inicial, com longos floreios entre os compassos e, enquanto esperava pelo fim, sentiu que o ressentimento deixava seu coração. A peça terminou com harpejo de oitavas agudas e uma fortíssima oitava final no grave. Estrondosos aplausos felicitaram Mary Jane que, envergonhada, enrolou nervosamente a partitura e fugiu da sala. Os aplausos mais vigorosos vinham dos rapazes que tinham se afastado da porta no início da peça e retornado quando o piano silenciara.
   Organizou-se nova dança. Gabriel encontrou-se ao lado de Molly Ivors, jovem loquaz e desembaraçada, de rosto sardento e olhos castanhos. Seu vestido não era decotado e o largo broche espetado no colo continha o emblema e a divisa irlandesa.
   Ao tomarem seus lugares, para a dança, ela afirmou inopinadamente:
    __ Tenho uma conta a ajustar com você.
    __ Comigo?
    Ela balançou a cabeça com ar grave.
   __ O que é? - perguntou Gabriel, sorrindo de seus modos solenes.
   __ Quem é G. C.? - indagou a jovem encarando-o de frente.
  Gabriel enrubesceu e ia franzir a testa corno se não tivesse compreendido, quando ela prosseguiu:
    __ Oh, meu ingênuo farsante! Descobri que você escreve para o Daily Express. Não se envergonha disso?
    __ Por que haveria de me envergonhar? - perguntou Gabriel, piscando os olhos e tentando sorrir.
      __ Bem. Estou envergonhada de você - disse ela com franqueza. __ Pensar que escreve para um jornal como esse. Não sabia que era anglófilo.
    Gabriel estava perplexo. Era verdade que escrevia a resenha literária semanal do Daily Express, recebendo para isso quinze xelins. Mas, por certo, isso não fazia dele um traidor. Os livros que recebia para comentar davam-lhe muito mais prazer que o ínfimo cheque. Gostava de sentir as capas e virar as páginas dos livros acabados de imprimir. Quase todo dia, após as aulas que dava no colégio, costumava visitar os vendedores de livros usados da zona do cais: o Hickey, em Barchelor's Walk; o Webb's ou o Massey no Aston's Quay; o O'Clohissey's, numa travessa. Não sabia como enfrentar aquele ataque. Queria dizer que a literatura estava acima da política, mas eram amigos há muitos e muitos anos e suas carreiras - primeiro na Universidade, depois como professores - tinham sido paralelas: não poderia arriscar uma frase grandiosa com ela. Continuou a piscar os olhos, esforçando-se em sorrir e murmurou desajeitadamente que não via nada de político no fato de escrever resenhas literárias.
    Ao chegar o momento de trocarem de par, Gabriel ainda estava confuso e distante. Ela apertou calidamente sua mão e sussurrou-lhe em tom suave e amistoso:
     __ Eu estava brincando. Vamos, é nossa vez.
    Quando tornaram a ficar juntos, Molly começou a falar sobre a questão da Universidade e Gabriel sentiu-se mais à vontade. Um amigo mostrara-lhe o artigo sobre Browning. Eis como o segredo fora descoberto. Mas apreciara muito o que ele escrevera. Depois, bruscamente perguntou:
     __ Não gostaria de participar de uma excursão às ilhas de Aran, no próximo verão, senhor Conroy? Vamos passar lá um mês inteiro. Será magnífico sentir-se em pleno Atlântico. Você deve ir. O senhor Cancy irá. O senhor Kilkelly e Kathleen Kearney também. Seria ótimo para Gretta, se ela também fosse. Ela é de Connacht, não?
     __ A família dela é - respondeu Gabriel secamente.
     __ Você virá, não? - insistiu Molly, pousando a mão tépida em seu braço.
      __ Acontece que combinei ir...
      __ Para onde?
    __ Bem, você sabe, todo ano faço uma viagem de bicicleta com alguns amigos e...
      __ Mas para onde? - repetiu Molly.
     __ Geralmente vamos à França ou à Bélgica... ou então à Alemanha - disse Gabriel embaraçado.
     __ E por que para a França ou para a Bélgica, em vez de visitar a nossa pátria?
     __ Bem, em parte para manter contato com as outras línguas, em parte para mudar de ambiente.
    __ E não precisa manter contato com sua própria língua, o irlandês?
      __ Bem, se o motivo é esse - respondeu Gabriel -, o irlandês não é a minha língua.
   Os pares mais próximos tinham se voltado para ouvir o interrogatório. Gabriel olhava preocupado para os lados, tentando conservar o bom humor sob aquela provação, que fazia o rubor invadir--lhe a testa.
     __ E não tem sua própria terra para visitar - prosseguiu Molly __ da qual não conhece nada? Seu próprio povo, seu próprio país? 
     __ Para ser franco - respondeu Gabriel - estou farto de meu país. Farto! 
      __ Por quê? 
      Gabriel não respondeu. A última frase deixara-o exaltado. 
     Chegara a vez deles fazerem "a visita" e como Gabriel permanecia em silêncio, Molly disse energicamente:
      __Claro. 
      Não tem resposta. 
     Gabriel procurou disfarçar sua agitação participando da dança com grande entusiasmo. Evitava o olhar de Molly, pois percebera uma expressão amarga em seu rosto. Mas quando suas fileiras tornaram a se encontrar, Gabriel, surpreso, sentiu que lhe apertavam firmemente a mão. Molly fitou-o zombeteiramente até fazê-lo sorrir. Ao reiniciarem os movimentos, ela ergueu-se na ponta dos pés e sussurrou: 
      __Inglês! 
    Quando a quadrilha terminou, Gabriel retirou-se para um canto afastado da sala, onde a mãe de Malins estava sentada. Era uma mulher gorda e doente, de cabelos brancos. Tinha voz rouca como a do filho e gaguejava ligeiramente. Haviam-lhe dito que Freddy chegara e que estava quase sóbrio, Gabriel perguntou-lhe se fizera boa travessia. Ela morava em Glasgow, com a filha casada e visitava Dublin uma vez por ano. Respondeu sossegadamente que fizera ótima viagem e que o capitão do barco fora muito gentil. Falou também da bela casa que a filha possuía e de todos os amigos que tinham em Glasgow. Enquanto ela tagarelava, Gabriel procurava banir da mente o incidente com a senhorita Ivors. A jovem, ou mulher, ou o que quer que fosse, era sem dúvida uma exaltada. Afinal, para tudo existe momento adequado. Talvez não devesse ter respondido daquela maneira. Mas não tinha direito de chamá-lo de inglês diante dos outros, nem mesmo brincando. Tentara ridicularizá-lo na presença de todo mundo, provocando-o e encarando-o com seus olhos de coelho. 
     Viu sua esposa aproximar-se por entre os pares que dançavam uma valsa. Quando o alcançou, ela murmurou ao seu ouvido: 
     __ Tia Kate quer saber se você vai trinchar o ganso como sempre. A senhorita Daly cortará o pernil e eu cuidarei do pudim.

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