A PRINCESA E O ANJO NEGRO
Eram sete irmãs. Seis se
casaram. Menos uma. E a mais bonita. Filhas de um pequeno comerciante, que a
todas reservou boa educação e dote considerável. Pouco comum, naquele tempo, as
mulheres frequentarem escolas. Mas elas frequentaram ensino pago. O pai não
poupou esforços. Trabalhava no velho armazém como escravo. Ele sabia que não
era fácil casar uma filha que não tivesse boa educação e uma quantia razoável
de moedas. Até à sua morte, durante mais de quarenta anos, quem passasse pela
rua, podia vê-lo trabalhando até altas horas. Costumava-se dizer, que ele tinha
calos na barriga de tanto esfregá-la no balcão.
A todas elas, choveram pretendentes. Afinal,
que moço de nossa região não desejava uma oportunidade desta? Todas belas, nenhuma com defeitos graves, a
não ser umas pintas aqui e acolá, que ajudavam a deixá-las mais bonitas. Maria,
Judite, Lindalva, Rosa, Elisa, Joana e Francisca. Dos dezoito anos aos vinte,
uma a uma foi-se casando, deixando o ninho. Mas Lindalva, talvez a mais bela,
não deixou.
Todos se perguntavam: o que havia de
estranho? Por mais que indagassem, nada era visível. E isto atiçava a
curiosidade de nossa gente. Somos uma espécie de seres aguçados pela magia que
o desconhecido proporciona.
Desde pequena, Lindalva destacava-se das
outras. Conforme crescia, tornava-se mais exigente. Enquanto as irmãs
contentavam-se com a vida simples da pequena cidade, ela criava ares de
importância. Para ir à escola, vestia-se com esmero. Penteava-se lentamente,
colocava flores nos cabelos negros, como se fosse já moça.
As outras meninas brincavam no pátio da
escola, sujavam-se, algumas até brigavam e voltavam para casa com rasgões no
uniforme. Lindalva não se misturava com as meninas, muito menos com os meninos.
As professoras a tratavam com mimos. Era o exemplo na higiene, no comportamento
e nas avaliações. Seus cadernos eram diferentes, cheios de florzinhas e cores
do arco-íris. Enquanto as meninas tagarelavam, ela postava-se numa velada
educação.
__Por que não fazem como Lindalva? – esbravejava
a professora de Arte. __ Olhem para ela: está sempre limpa, traz as tarefas em
dia!
Por isso era odiada. Qual criança gosta de
ser comparada com outra? Em pouco tempo, andava só. Ninguém queria fazer-lhe
companhia. Sinceramente, andar com ela seria como ficar no meio de fogo
cruzado.
Mesmo ainda uma criança – nem completara
treze anos -, começou a encher-se de perfumes, que ela sorrateiramente pegava
das prateleiras do armazém. Tomava longos banhos, como se fossem rituais. Desde
esta idade, entregou-se a uma verdadeira loucura por roupas. Todas as meninas
apreciam roupas bonitas, mas com ela era diferente. Procurava destacar-se pelo
charme e a novidade. Devorava as revistas de moda e procurava colocar-se na
vanguarda. A moda nem tinha chegado ao Rio de Janeiro ou São Paulo, ela já
estava atormentando as costureiras para copiar os modelos. Isto, sem dúvida,
espantava a cidade.
Em grupo, falavam coisas e coisas dela,
mas, no íntimo, tinham certa inveja. Chegava a ser até mesmo ridículo. Mas logo
outras mocinhas começavam a imitá-la. Todas as suas conversas giravam em torno
das novidades da moda e de seus caprichos. Tornava-se chata. Era amada
escondidamente e também odiada.
Aquilo, entretanto, logo se revelou uma
verdadeira paixão. Seus olhos brilhavam. A mesada que recebia dos pais era
consumida nestas extravagâncias. De noite, por diversas vezes, foi pilhada
cortando metros de fazenda do armazém do pai, como ladra. Até mesmo caçar
borboletas, como se deu com o velho alemão Fritz Walden, pode tomar conta do
coração e se transformar numa paixão. Já não se trata de algo domável, mas de
uma obsessão, uma espécie de doença.
Dizia às irmãs:
__Vocês são bobas! Se agarram,
desesperadas, ao primeiro homem que aparece. Até parece que o homem é uma tábua
de salvação! Tolinhas...
As irmãs riam. O fato é que elas, apesar de
bobinhas e desesperadas, como Lindalva apregoava, estavam casando. Não
aguardavam o príncipe encantado. Queriam homens trabalhadores e que as
tratassem bem. Mas Lindalva, a cada dia, tornava-se mais exigente.
As mulheres, então, usavam as roupas por
muitos anos. Não era só para uma estação. O comerciante vendia peças inteiras,
fechadas. Lindalva usava no máximo três vezes, depois abandonava as peças e ia
atrás de outras novidades. Para cada ocasião, um traje. Batizados, casamentos,
missas, visitas – tudo exigia um traje diferente.
Conselhos da mãe não lhe faltavam. Os
pretendentes apareciam, logo sumiam. Desprezava-os, tratava-os como chinelos
gastos.
__O que você quer, afinal? – perguntava a
mãe, aborrecida. – Um príncipe encantado? Isto só acontece nas histórias de
fada, sua bobinha! Pelo que sei você não é nenhuma fada, com a varinha
mágica...
Ela rebatia:
__ Não me casarei com um pé-rapado! Eu me
valorizo. Não devo ter pressa, posso esperar.
__Beleza não se põe em mesa, filha! Olha
suas irmãs: nenhuma está aflita, estão bem casadas e muito contentes.
__ Elas não são finas. Sequer sabem usar
roupas. Estão gordas e deformadas. Eis o que o casamento com esses brutamontes
lhes rendeu. Eu não quero ficar assim, como tamborete.
__ Menina, olha o que diz! Elas trabalham
com seus maridos. Estão indo muito bem. Querem fazer o pé de meias. Nada mais
justo.
__ Ora, mamãe, de que adianta bom pé de
meia, cofre cheio, se o corpo se parece com um sapo, uma mulher doente? Se é
para envelhecer antes do tempo, a pretexto de servir maridos e angariar fundos,
prefiro continuar sozinha.
__ A juventude, filha, é uma flor delicada,
logo se desfaz. Dela, só nos restam as lembranças... Olhe para mim: pensa que
sempre tive essas rugas, esses cabelos brancos, essa barriga forrada de
gordura? Sem falar das varizes que me torturam... A juventude é uma ilusão...
__ Ah, mamãe, você ficou assim porque trabalhou
demais, quase se matou para nos criar. É justamente isto que eu não quero! A
velhice é um fantasma que me assusta, me persegue!
__ Crie juízo, menina: a beleza é uma
espécie de promessa da felicidade. De que adianta a alguém tanta formosura se não
tem cérebro? Ela é passageira, filha, e é um bem frágil.
__ Oh, mamãe, só não quero envelhecer antes
do tempo, como acontece com as minhas irmãs.
Desesperada, a mãe desistia dos conselhos.
Dava de ombros e pensava: “Com o rolar dos dias, ela mudará de opinião. Não tem
juízo. O amor ainda não tocou o seu coração.”
Mas não foi isto que aconteceu.
Mulheres precisam de maridos. Quem escolhe
muito acaba sozinha. Os dias passavam e Lindalva dedicava-se a certas
extravagâncias. Sua beleza resplandecia e deixava os moços apaixonados, e as
moças com inveja.
Choviam pretendentes. Muitos eram atraídos
pelo dote. Nem todas as jovens tinham esta vantagem. As pobres casavam-se ou se
amancebavam por circunstâncias: nada tinham que ofertar a não ser noites
quentes de amor e trabalho escravo. Precisavam ajudar os seus homens no
sustento da casa. Podres de cansaço, elas tinham por obrigação oferecer a mesa
posta e bons momentos de cama. Com Lindalva, o dote funcionava como visgo aos
homens que vinham de longe, sempre bem arrumados. Mas ela os refutava.
__ Parece um moço tão distinto! – observava
a mãe.
Ela dava de ombros.
__ Não gostei.
__ Do que não gostou? O que espera
encontrar nos homens? São todos iguais. São brutos e ignorantes. De noite, não
querem saber de beleza alguma. Querem ser satisfeitos!
__ Ele tem tufos de pelo no nariz. Isto,
sinceramente, me dá nojo. Se tem pelos no nariz, também tem nas costas. Não
quero me casar com um lobisomem! Deus me livre!
Para outro pretendente observou:
__ Cheira igual a um bode.
__ Ora, qual homem que não exala suor? Só
se for um maricão... E as mulheres também fedem.
__ As vulgares, talvez. Eu não me incluo
nesta gentinha.
__ Do que pensa que é feita? Por acaso, nas
suas veias corre água de colônia? Somos barro.
__ Seja o que for, não quero um bode velho
na minha vida.
Quanto mais desprezava, mais eles se
apaixonavam. Os homens gostam das flores que não conseguem colher. Muitos,
sofrendo, desapareciam chapadão afora, tresloucados, e nunca mais pisavam o
chão da cidade. Havia o que cobiçava o
dote e aquele que se deixava dominar pela força daqueles olhos negros.
Por esta ocasião, os habitantes começaram a
chamá-la de Princesa. Não era elogio, mas destrato. Talvez inveja, talvez
despeito. Ou chacota. As más línguas não cochilam.
__ O que a Princesa procura?
Respondiam maldosamente:
__ A geada do ano passado.
Ora, como se as geadas pudessem ser
guardadas de um ano para outro! Quem sabe, ela queria o impossível.
Choviam ironias:
__ Está esperando um anjo cair do céu.
Mas anjos não habitam o terreno dos
mortais.
As casadas, rodeadas de filhos, frequentadoras
da igreja, já envelhecidas pelos descuidos e intempéries, invejosas, destilavam
veneno puro, cobras peçonhentas.
__ Toda princesa se transforma em bruxa.
Deus nos livre!
Benziam-se.
__ Quem sabe, à noite, o seu rosto fica
salpicado de verrugas...
Mas não ficava. O problema é que os anos
passavam e a Princesa não percebia. Quando uma mulher não se casa, ela passa a
criar horror pelos espelhos. Aparecem os primeiros cabelos brancos e
normalmente sobrevém o desespero. Com Lindalva, nada disso acontecia. A cada
dia, surpreendia a cidade com novas roupas e novos perfumes, e parecia mais
bonita. Por onde andava, um cheiro de colônia pairava sobre as pessoas e as
deixava inebriadas.
Suas amigas estavam casadas e ela se sentia
só. As moçoilas não gostam de passear com alguém mais velha. A conversa não
flui e também há o medo de que a companhia de uma solteirona dê azar... E tinha
o ar esnobe: ninguém a acompanhava nas roupas, nos perfumes, nas peças de
teatro que se apresentavam nas grandes cidades. Ela estava muito acima das
moças que desejavam arrumar um bom marido.
Completara trinta anos. Estava pouco
ligando para a idade. Embora fosse objeto de baixo falatório, ela continuava
bela. Quando todos pensavam que o seu destino era a terrível solidão de
solteirona, deu-se o inesperado: apareceu um raro pretendente. Vestia-se de
preto. Sua cabeça sustentava um chapéu preto de abas largas. Veio do nada. Dava
passadas altivas, como se desfilasse numa passarela, com todas as pompas. Suas
calças eram bem vincadas e as botas de tacos fortes rebatiam no calçamento e produziam um barulho de aço.
__ Pelo sim, pelo não, aqui estou e só
levarei o que vim buscar! – disse numa fala empolada, cheio de altivez.
Era um domingo à tarde e fazia muito calor.
Os jovens tinham como hábito passear pela rua central. Lá estava a princesa,
sozinha, indo de um lado a outro, com sua beleza insólita, como se esperasse
por alguém, quando o cavalheiro negro se aproximou e, fazendo esquisitas
mesuras, com um sorriso largo e desproporcional sob o bigode negro, foi
dizendo:
__ Sou o teu anjo. Vim buscar-te.
Todos esperavam o desprezo usual de
Lindalva. Afinal, ela tinha repudiado centenas de jovens. Algo estava para
acontecer e todos previam o pior. Aquele pobre coitado sairia do encontro com o
rabo entre as pernas. Os cochichos e risos abafados já soavam nos pequenos
grupos de moças.
Perplexa, a população domingueira viu a
Princesa dar-lhe o braço e, sorridente, acompanhar o estranho cavalheiro rua
acima.
__ Ora, pois, finalmente o pé esquecido
achou o seu chinelo – alguém balbuciou no meio da rua.
__ Antes tarde do que nunca. Para nós,
homens, há sempre uma armadilha preparada – comentou outro, sem explicar o que
havia dito.
Os comentários correram soltos na rua
central. Algumas moças diziam que ela o apanhara por desespero. Que tipo de
homem era aquele cavalheiro vestido de preto? Ninguém sabia dizer de onde vinha
e muito menos se tinha alguma posse. Os moços que haviam sido desprezados por
ela soltaram a língua de trapo; as mulheres, casadas ou não, teceram fuxicos
apimentados.
__ Será que ela, enfim, desceu do pedestal?
__ Por que desceria? Ela nunca teve
necessidade alguma de se mostrar humana. Deve ser fria como uma pedra.
__ Provavelmente, ela conheceu a verdade.
__ Que verdade?
__ De que é muito difícil uma mulher bonita
se achar realmente bonita quando a juventude declina.
Brotavam hipóteses.
__ Quem é o jovem cavalheiro?
Ninguém sabia.
Será que ela tinha este caso há tempo, por
isso, não mostrava interesse por ninguém? Bem, ela sempre viajava para as
cidades grandes. Com certeza, conhecera-o numa dessas viagens. Por que não? Mas
por que ela manteve aquele segredo durante tanto tempo? Isso ninguém sabia.
__ Caprichos de mulher...
Todos estavam boquiabertos. Alguns seguiram
o casal rua afora. Mas, de repente, como o vento, as silhuetas desapareceram,
sob a leve poeira esparzida no ar abafado daquela tarde de domingo.
Esconderam-se num fundo de quintal, num beco despovoado – foi a conclusão dos
curiosos. Ninguém desaparece de um momento para outro, assim-assado!
Fomos à casa dela. Os pais, já
envelhecidos, de nada sabiam. Disseram que ela saíra para o passeio de domingo.
Ela não apareceu naquela noite, muito menos
nos dias seguintes. Uma intensa busca se desenrolou pela região, mas ninguém a
tinha visto. Foi um grande alvoroço. Todos tinham as suas opiniões sobre o
fato, mas não passavam de especulações. Nunca a cidade presenciara algo
parecido.
__ Pobre coitada! – diziam as mulheres. –
Ela percebeu que só havia um jeito de sair do buraco: cavando outro buraco...
Depois daquele domingo, uma década se
passou e ninguém ouviu notícias da Princesa. Muito se falou dela e do estranho
cavalheiro negro, que a raptou. Sim, é o que se divulgava: ela fora raptada.
Outros acontecimentos foram possuindo
nossas cabeças e a vida seguia o seu curso. O que há de se fazer? A vida segue
em frente. Até sobre a família dela os comentários cessaram. Pais e irmãs
sabiam o seu paradeiro? Provavelmente, não. Eles se fecharam em conchas.
Sofriam, encolhiam-se resignados ao completo silêncio. E todos compreenderam
que a ferida sangrava, por isso evitavam fazer comentários. Seis filhas viviam
nas redondezas, casadas, um rol de filhos, ajuizadas e benquistas na
comunidade. Uma,talvez a mais bela, encabeçara diverso rumo. O que fazer?
__ Os dedos da mão são iguais?
O velho comerciante, após a partida dela,
fechou as portas do armazém. Não tinha mais vigor para tocar o negócio.
Trabalhara tanto para dar boa educação às filhas e, na velhice, o mundo ruíra
aos seus pés. Sentia-se fraco, com dores nas pernas e tropeçava facilmente,
como se elas, sem comando, bambeassem. A última vez que o, vi estava numa
cadeira de rodas, babava, e dizia palavras desconexas. Numa manhã de inverno,
morreu. O enterro se deu sem alvoroço.
A cidade também se transformara. Havia uma
revolução de conhecimentos no campo. Os costumes milenares no trato da terra
foram substituídos de forma inesperada. Já não se cortava o trigo com ancinhos.
Mas com colheitadeiras potentes. Abandonou-se a enxada. Os tratores reviravam a
terra e, ao mesmo tempo, semeavam, distribuindo o adubo na quantidade certa. Os
pequenos agricultores – proprietários e meeiros – foram expulsos de seus
sítios. Nas cidades, aglomerou-se um bando de gente que, antes, era dedicada ao
trabalho, mas que, diante das circunstâncias, não sabia fazer mais nada. Por
isso, esse bando de gente andava de um lado para outro, vagabundeando, muitos
bebiam pelos botecos e seus filhos iniciavam-se nas drogas.
__ O ócio destrói – afirmou um professor,
revoltado, pois a escola, que era até então um lugar sagrado, tornara-se,
repentinamente, um lugar onde não havia respeito e alunos ofendiam professores em público.
Essa gente queria trabalhar, mas não havia
o que fazer. Eram acostumados ao trabalho duro no campo, de sol a sol. Mas os
tempos haviam mudado: o campo ganhava produtividade, porém eles conheciam a
miséria, e seus filhos eram criados em periferias das cidades junto com ratos e
lixões.
Eis que, do nada, desembargou na rodoviária
a Princesa. Chovia muito naquele dia. Uma névoa branca cobria a cidade e uma
camada fina de lama vermelha tingia as ruas. Junto dela, uma garota de treze
anos. Do bagageiro, desceram na plataforma pesadas malas. Ambas trajavam-se com
requinte, com enormes brincos pendurados nas orelhas e sapatos de tacos altos,
impróprios para a ocasião.
__ Sabe quem é a fulana? – perguntou-me o
dono do restaurante, onde eu acabara de digerir saborosa refeição caseira.
Olhei-as. Não acreditei no que via.
__ É a Princesa! – exclamei surpreso e
tomado pela curiosidade. – O fantasma volta ao seu chão!
__ Veja como elas andam! Eu diria que elas
têm a rainha na barriga... Nunca vi tanta vaidade...
__ Não mudou nada.
__ Você as conhece?
__ Uma, pelo menos.
Fiz questão de ajudá-las a carregar as
malas.
__ Para onde vão?
__ Ora, para casa – disse-me, enquanto se
colocavam na minha frente e caminhavam com altivez. – Vamos, filha!
__ Mamãe, o que viemos fazer aqui neste fim
de mundo? Por acaso, essa gente está ainda na pré-história?
Ela ralhou entre dentes:
__ Vá em frente! Não estou disposta a dar
explicações.
Estava mais velha. Mas não perdera o brilho
da formosura.
Uma
velha criada a recebeu. Vivia só. Logo que morrera o comerciante, também se
findara a esposa. E a criada ficou morando na casa, que era parede e meia com o
antigo armazém.
Deixei-as na porta. Embora ardesse de
curiosidade, nada descobri. Retornei ao restaurante e já senti que a notícia se
espalhara. Nossa cidade, embora tivesse hábitos novos, despertou-se rapidamente
diante do inesperado retorno da Princesa. O assunto estivera adormecido durante
uma década, como brasas sob cinza. De repente, bastou um leve sopro e elas se
avivaram.
__ O que a traz de volta? Sumiu sem
levantar poeira e voltou como se nunca tivesse pisado por aqui. Há coisas nesta
história. Ninguém faz isto à toa...
E as especulações começaram. A língua
espicha porque não tem ossos. Por onde andara naqueles anos? Por que, enfim,
voltara? Quem era o pai daquela menina? Que fim tivera o cavalheiro negro que a
raptara naquela tarde ensolarada de domingo? Boatos circulavam.
Aguardávamos impacientes o relato da sua
longa ausência. Queríamos ouvir de sua boca e não através de mexericos. Para
surpresa geral, ela se enfiou naquela casa e não saiu sequer na porta da rua.
Víamos a criada arrastando as pesadas pernas gordas saindo com um cesto para
fazer as compras, mas nenhum sinal dela. De nada valia perguntar à criada.
Estava surda por causa da idade.
Restava-nos a visita das irmãs. E, de fato,
isto aconteceu. Quando indagadas,
diziam:
__ Perguntem a ela! – e se fechavam.
A filha, entretanto, surpreendeu-nos. Frequentando
a escola, em poucos dias ficou conhecida. Tinha os mesmos hábitos da mãe quando
jovem. Roupas novas, joias, perfumes, o ar esnobe, o culto à beleza. E falava
com certa petulância, colocando-se num pedestal. Uma cópia perfeita. Logo ficou
odiada e comentada. Os meninos a admiravam e se apaixonavam; as meninas
destilavam veneno em suas línguas afiadas. Quando falava sobre as viagens que
fizera com a mãe, tornava-se indigesta e criava ciúmes na plateia que nunca
havia viajado.
__ Paris! Paris! Aquilo que é cidade! O
berço do amor e da poesia...
Haveria algum dote para ela? Princesa
retornara com algum baú cheio de ouro? Suposições e mais suposições.
Vi a cidade voltar àqueles anos em que a
Princesa desfilava altiva pelas ruas, desprezando jovens apaixonados e causando
furor nas amigas, à espera de seu anjo, o cavalheiro negro.
Perguntaram, certo dia, a Elizabeth por que
não se casava. Respondeu com desprezo:
__ Com esses bodes velhos? Nem morta! Esses
homens pré-históricos são capazes de agarrar a mulher pelos cabelos e a
arrastarem pelas ruas como troféu. Espero por algo melhor...
As moças de sua idade foram casando-se.
Elizabeth, como a mãe, vivia sozinha, num pedestal. As más línguas a chamavam
de Elizabeth, a rainha, já que não podiam chamá-la de princesa.
__ Se não gosta daqui, por que não vai
embora?
Não havia resposta.
__ O que está esperando?
__ Espero por um anjo.
Por esta ninguém esperava. Um anjo! Mas que
besteira! Anjos não habitam a terra.
__ O
fruto não cai longe da árvore – diziam as mulheres que conheciam a Princesa
desde pequena.
__ Só se for o Anjo Negro!
Elizabeth sacudia os ombros, desdenhando.
__ Seja o que for. Espero por ele.
Espalhou-se, de forma abrupta, que ela era
fruto de alguma bruxaria. Quando os capuchinhos vieram à cidade para fazer uma
lavagem dos pecados, apreensivos, eles foram à casa da Princesa para
administrar as bênçãos. Semana Santa, quarta-feira, três deles bateram à porta,
mas em vão. Não foram recebidos. Pacientes, esborrifaram água benta nos oitões
e a água benta ferveu, evaporando. Eles saíram apressados, como se fugissem de
uma legião de demônios, deixando as fiéis beatas apavoradas.
Na sexta-feira, quando caminhávamos para a
celebração do calvário, depois de jejuar até o meio-dia, Elizabeth – com roupas
novas, coloridas, pulseiras brilhantes – caminhava alegre na avenida. Parecia
que ia para uma festa. Por onde passava, um lastro de colônia pairava no ar,
inebriando. Aquilo era um verdadeiro sacrilégio. Mulheres se benziam e
caminhavam sôfregas sem olhar para trás.
Então, para nosso espanto, no meio daquela
pequena multidão que caminhava em direção da igreja naquele dia santo, surgiu
um cavalheiro negro com um esquisito sorriso sob o bigode espesso, de chapéu de
abas largas, e no meio de todos, depois de fazer mesuras, disse com a voz
empolada e em bom tom:
__ Aqui estou, minha rainha.
Estávamos paralisados.
__ Sou o teu anjo. Vim buscá-la.
Elizabeth agarrou-se ao seu braço e, numa
conversa elegante, mas abafada, como antigos amantes, caminharam rua afora.
Depois, sem deixar vestígios, desapareceram.
Apavorados, não tivemos dúvidas: era obra
do demônio. Quem vira o cavalheiro negro, quando viera buscar a Princesa, não
se cansava de dizer:
__ É o Anjo Mau. Eu vi. Repuxava as orelhas
como Belzebu. Aquele chapéu é para esconder os chifres!
No sábado santo, algumas pessoas picharam a
casa da Princesa, com nomes feios, excomungando-a. Mas ela não abriu a porta e
muito menos apagou as ofensas das paredes.
Passou-se mais uma leva de anos. O
esquecimento cobriu nossas cabeças. Tudo muda. O mundo é móvel e a vida segue
em frente.
Sempre que passava por perto da casa da
Princesa, eu parava, perscrutando. Estaria viva ainda? A criada surda morrera.
Urubus nunca pousavam naquele telhado. E ela nunca abria as janelas.
E um desses dias, em que dava minhas
caminhadas, uma janela se abriu, inesperadamente, e vi alguém chamando. Fiquei
perturbado. O chamado era para mim. Não havia mais ninguém por perto. Não
esperava que alguma janela do velho armazém se abrisse. Belisquei meu braço
para ver se estava consciente. Um vulto
me chamava. Caminhei trôpego, com chumbo nas pernas. Fosse outro, teria fugido.
Ao me aproximar da janela, vi o que não via há anos: a Princesa.
__ Senhor, por favor, preciso de sua
ajuda...
Abriu-me a porta, que ringiu demoradamente.
Mandou-me sentar. O sofá antigo e empoeirado tinha até teias de aranha.
__ Oh, desculpe a desordem... Depois que a
criada se foi...
Estava curvada e enrugada. Rosto cheio de
verrugas e cabelos brancos descuidados. Deixara de pintá-los. Andava com
dificuldade. Comunicou-me:
__ Quero vender tudo o que tenho. Não tenho
a quem deixar os meus pertences. Devem valer uma fortuna.
E me mostrou os casacos de peles, os
tapetes persas e chineses, as roupas íntimas, as joias, uma coleção de sapatos,
uma infinidade de lenços e vestidos, todos bem dispostos como se estivessem em
uma vitrine.
Fiquei aturdido. Quem compraria aquelas
roupas de quarenta anos? Eram vanguarda, então, mas o que fazer com elas hoje?
Ela tinha peças íntimas que nunca foram usadas. Ao menor toque, com certeza se
desintegrariam como poeira. O cheiro nauseabundo de naftalina me provocava dor
de cabeça. Assim mesmo, as traças tinham feito grande estrago. Abriu-me pelo
menos uma dúzia de baús. O que fazer com tudo aquilo? Haveria algum maluco
disposto a jogar dinheiro fora? Há algo mais volátil do que a moda? Os gostos
mudam conforme os ventos. Mesmo as joias – correntes pesadas, longos brincos,
pulseiras enormes, grandes broches adornados, anéis de ouro maciço. Só se
alguém os derretesse e transformasse em barras.
__ Quero me desfazer desses objetos.
Tentei explicar a evolução dos tempos.
Minhas palavras soaram inúteis. Enfim, concordei.
__ Verei o que posso fazer.
E saí. Respirei fundo: para me
desintoxicar, a plenos pulmões. Tinha entrado numa enrascada. O que ela me
pedia era absurdo. Bem, pelo menos, estivera frente a frente com ela e, de
certo modo, minha curiosidade fora saciada.
Uma semana depois, quando resolvi visitá-la
para dizer que não aceitava a proposta, vi urubus sobrevoando a casa. Forcei a
porta e ela se escancarou. Encontrei tudo revirado, baús abertos, roupas
jogadas pelo assoalho empoeirado. As joias tinham sumido. No canto da sala,
jazia a Princesa, putrefata, o pescoço degolado. Moscas azuis pousavam sobre a
pele em decomposição. Ratões remexiam as vísceras e o mau cheiro era
insuportável.
Foi enterrada às pressas. Chovia muito e
sua sepultura se encheu de água e lama. Nem mesmo as irmãs compareceram. Ao
sair do cemitério, tive a impressão de que o cavalheiro negro também saía.
Estava sem guarda-chuva, mas não se molhava, e tinha o mesmo sorriso esquisito
sob os espessos bigodes.
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