PARTE 2 / OS MORTOS - JAMES JOYCE / DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO - REVISTA BRAVO

OS MORTOS - JAMES JOYCE / PARTE 2

    Gabriel olhou para o teto que tremia com o arrastar e bater de pés no andar de cima. Ouviu por um momento o som do piano e voltou-se novamente para a jovem que, com muito cuidado, dobrava e guardava o seu casaco no alto de uma prateleira.
     __ Diga-me Lily - perguntou em tom amável - você ainda vai à escola?
      __ Ó, não, senhor! Deixei de estudar há mais de um ano.
     __ Suponho então - acrescentou Gabriel, brincando - que um dia desses iremos ao seu casamento?
     A jovem olhou-o por sobre os ombros e respondeu com azedume:
    __ Os homens de hoje são todos uns aproveitadores bons de conversa.
    Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido um deslize e, sem olhar para ela, tirou as galochas e esfregou vigorosamente o cachecol nos sapatos de verniz.
    Era um rapaz forte, bastante alto. O acentuado rubor de suas faces subia até a testa onde se atenuava em manchas informes e rosadas. Em seu rosto liso, cintilavam sem descanso as lentes e os aros dourados dos óculos que lhe cobriam os olhos delicados e inquietos. Os cabelos, negros e lustrosos, eram repartidos no meio e penteados numa longa curva atrás das orelhas, onde se enrolavam levemente no sulco deixado pelo chapéu.
     Quando terminou de lustrar os sapatos, endireitou-se, ajustou o paletó em seu corpo robusto e, afobadamente, tirou uma moeda do bolso:
     __ Lily - disse ele, colocando a moeda em sua mão. - Estamos no Natal, não é? Tome... uma pequena...
    Apressou-se em direção à porta.
     __ Oh não! - exclamou a moça, saindo atrás dele - Não posso aceitar.
     __ É Natal! É Natal! - disse Gabriel, quase correndo para a escada e agitando a mão num gesto de desculpa.
       Vendo-o subir a escada, Lily gritou:
       __ Então muito obrigada, senhor Conroy.
     Gabriel esperou, junto à porta do salão, que a valsa terminasse, ouvindo vestidos roçarem contra ela e o rumor de pés que se arrastavam no assoalho. Estava ainda perturbado pela resposta brusca e rude da jovem. O incidente lançara uma sombra sobre ele, que agora tentava dissipá-la ajustando os punhos da camisa e o nó da gravata. Tirou um pedaço de papel do bolso do colete e leu os tópicos que anotara para o seu discurso. Continuava indeciso quanto à citação dos versos de Robert Browning, pois temia que estivesse acima da compreensão dos ouvintes. Talvez fossem melhor alguns versos de Shakespeare ou das Melodias de Thomas Moore. A forma grosseira como os homens batiam os pés e arrastavam os sapatos no chão recordou-lhe a diferença de cultura que os separava. Faria um papel ridículo, citando-lhes poesia que não podiam compreender. Pensariam que fazia alarde de sua superioridade. Erraria com eles como errara com a jovem lá embaixo. Escolhera um tom falso. O discurso todo era um equívoco, um completo fracasso.
    Nesse instante, suas tias e sua esposa saíram do quarto de vestir. As duas velhotas, pequeninas, estavam vestidas com simplicidade. Tia Júlia era duas polegadas mais alta que a irmã. Seus cabelos, que cobriam a ponta das orelhas, eram grisalhos e seu rosto, largo e flácido, de um cinzento carregado de sombras. Embora de compleição robusta e ereta, o olhar vago e a boca entreaberta davam-lhe a aparência de uma mulher que não sabia onde estava nem para onde ia. Tia Kate era mais vivaz. Seu rosto, mais saudável que o da irmã, era só rugas e sulcos, lembrando uma maçã seca e murcha. Mas os cabelos, penteados de forma antiga, conservavam a cor de nozes maduras.
    As duas beijaram-no efusivamente. Ele era o sobrinho preferido, filho da falecida irmã mais velha, Ellen, que se casara com T. J. Conroy do Porto e das Docas.
    __ Gretta falou que você pretende não voltar a Monkstown esta noite - disse tia Kate.
    __ É verdade - respondeu Gabriel voltando-se para a esposa - Basta o que nos aconteceu no ano passado, não é? Tia Kate não se lembra do resfriado que Gretta apanhou? As janelas batendo o tempo todo e o vento oeste soprando dentro do carro, depois que passamos Merrion. Não foi nada divertido. Gretta apanhou um terrível resfriado.
      Tia Kate franzia a testa e balançava a cabeça a cada palavra:
      __ Tem razão, Gabriel. Tem razão. Todo cuidado é pouco.
      __ Ela não pensa assim - disse Gabriel.
      __ Iria para casa a pé no meio da neve se a deixassem.
      Gretta sorriu.
     __ Não acredite no que ele diz, tia Kate. É um terrível maçante: abajur verde para proteger os olhos de Tom à noite, ginástica com halteres pela manhã, sopa de aveia para Eva. Pobre menina! Já não pode nem ver essa comida... E vocês não imaginam o que ele me obriga usar agora!
     Rompeu num riso sonoro e fitou o marido, cujos olhos admirados e felizes percorreram-lhe o corpo e fixaram-se em seu rosto. As duas velhas riram gostosamente, pois a solicitude de Gabriel era velho motivo de brincadeira entre elas.

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