PARTE 4
Foi perante esta "alta personalidade" que se apresentou Acaqui Acaquievich, precisamente no momento menos favorável, muito adverso para ele, embora o mais oportuno possível para a "alta personalidade", que nessa própria ocasião se encontrava no seu gabinete e dialogava muito alegremente com um antigo conhecido, companheiro de infância, a quem há já vários anos não via. Tal foi o momento em que lhe anunciaram um tal Baquemaquine. Perguntou bruscamente: "Quem é?" Responderam-lhe que "um funcionário". "Bom, que espere; não tenho agora tempo", replicou a "alta personalidade". É preciso dizer-se que a "alta personalidade" mentia descaradamente. Tinha tempo; já acabara a conversa entre os dois amigos e estavam naquele ponto em que se recorre a frases desta espécie: "Assim era nesse tempo, Ivan Abramovich." "E como dizes, Estêvão Valarmovich."
Entretanto, mandou que o funcionário esperasse, com o propósito de demonstrar ao amigo, há muito retirado do serviço oficial numa casinha da aldeia, quanto tempo tinham de esperar os funcionários na sua antecâmara.Finalmente, depois de terem falado quanto quiseram (ou, melhor dizendo, depois de terem calado o suficiente) e terem fumado um cigarro sentados nas comodíssimas poltronas, de repente, como se por casualidade se recordasse, disse ao secretário, que estava de pé, junto à porta, com uns papéis para informar: "Se ainda ai está esperando o funcionário, diga que pode entrar."
Vendo o humilde Acaqui Acaquievich, com o seu velho uniforme, voltou a cara de repente e perguntou: "Que deseja?", com o tom de voz brusco e forte que antes experimentara em casa para tais emergências. Acaqui Acaquievich, que era um homem muito respeitador, atrapalhou-se um pouco e, com a liberdade com que lhe era possível dispor da sua língua, explicou, juntando agora com mais frequência partículas desnecessárias, que o capote era completamente novo, que lho tinham roubado de um modo desumano, que se lhe dirigia para que interviesse, escrevendo ao inspetor, fazendo aparecer o capote.
Pareceu ao general que tais maneiras eram demasiado familiares.
- Que é isso, senhor? - perguntou bruscamente. - Não conhece o
regulamento? Donde vem? Não sabe como se procede em tais casos? A primeira coisa que devia fazer era dirigir um requerimento à secretaria; esse requerimento seria então remetido, pelas vias competentes, ao chefe de repartição; este, por seu turno, remetê-lo-ia ao secretário, e o secretário tê-lo-ia remetido a mim...
- Mas, Excelência... - disse Acaqui Acaquievich, esforçando-se por reunir a pouca força que encerrava a sua alma e sentindo que transpirava de modo atroz. - Eu, Excelência, atrevi-me a apresentar-me diretamente, porque o tais secretários... é gente em que se não pode confiar...
- Quê? ... O quê?... O quê?... - clamou a "alta personalidade"... - Onde foi o senhor buscar essa ideia? Donde lhe surgiram tais pensamentos? Que audácia se está generalizando entre os jovens contra os superiores e a hierarquia?
A "alta personalidade" demonstrava assim que não reparara em Acaqui Acaquievich, o qual estava já nos 50; doutra maneira, chamar-lhe jovem seria bastante estranho.
- Sabe com quem está a falar? Sabe bem quem tem diante de si? Percebe isto? Percebe?, pergunto eu.
E deu uma forte patada no chão, imprimindo à voz tanta energia que mesmo um outro que não fosse Acaqui Acaquievich teria ficado bastante assustado.
Este, porém, deveras aterrado, sentiu um abalo interior e começou a tremer convulsivamente; mal se podia aguentar de pé, e, se um empregado não acorresse a ampará-lo, teria caído ao chão; retiraram-no hirto do gabinete.
Mas a "alta personalidade" estava contente com o efeito, que fora muito além de todos os seus cálculos. Embriagado com a ideia de que a sua voz forte era capaz de perturbar um homem até àquele ponto, olhou de lado para observar a impressão que fizera a cena, notando, não sem profundo prazer, que o amigo se encontrava na mesma situação indefinível e que até começava a sentir angústia.
Do modo como saíra do gabinete da "alta personalidade" e como chegara à rua nunca Acaqui Acaquievich foi capaz de se recordar. Não podia fixar-se no que acontecera: jamais, em toda a sua vida, um general, e demais o vento e a neve fustigavam-no; seguia pelo meio da rua, com a boca aberta, perplexo; o vento soprava, soprava, como é habitual em Sampetersburgo soprar o vento nas quatro direções, de todas as encruzilhadas.
Em certo momento a garganta resfriou-se-lhe, começou a sentir os sintomas de uma angina e, quando chegou a casa, não tinha sequer forças para proferir uma palavra. Deitou-se na cama com o pescoço exageradamente inchado.
No dia seguinte sobreveio uma febre altíssima. Graças à magnânima ajuda do clima sampetersburguês, a enfermidade progrediu mais rapidamente do que poderia esperar-se, e quando chegou o doutor tomou-lhe o pulso e entendeu que devia limitar-se a receitar qualquer coisa para o enfermo não morrer sem o benéfico auxílio da medicina; quanto ao mais, declarou que não viveria além de dia e meio; dirigiu-se à patroa, dizendo: "E a senhora não perca tempo: mande vir um caixão de pinho, pois um de mogno é muito mais caro."
Não sabemos se Acaqui Acaquievich ouviu essas palavras proferidas acerca da sua sorte; e, no caso de as ter ouvido, não sabemos se foram susceptíveis de o emocionar, porquanto permaneceu constantemente no delírio da febre. Visionava sucessivos conjuntos de memórias e de fantasias: ia visitar Petrovich e encarregava-o de lhe fazer um capote, mas com uma defesa contra os ladrões, que lhe surgiam sem cessar por baixo da cama, e pedia à patroa que lhe trouxesse um deles preso e coberto com a manta; logo perguntava porque lhe traziam um capote velho, quando possuía um novo; depois julgava encontrar-se diante do general, ouvindo os seu insultos, e dizia: "Perdoe Vossa Excelência"; por último praguejava nos termos mais grosseiros, de tal modo que a velha hospedeira se benzia e persignava, pois nunca tinha ouvido sair da boca dele tais palavrões, tanto mais quanto essas palavras eram contraditórias com as que anteriormente proferira, e principalmente com a expressão "Vossa Excelência".
Começou depois a falar sem o mínimo sentido, de tal modo que era impossível perceber fosse o que fosse; só podia inferir-se que as expressões incoerentes dos seus pensamentos convergiam para um único e idêntico objetivo: o capote. Finalmente, o pobre Acaqui Acaquievich morreu. Não foi selada a habitação, nem coisa alguma arrolada; em primeiro lugar, porque não existiam sucessores, e, em segundo lugar, porque a sua herança era, realmente, muito pequena, a saber: um embrulhinho com penas de ganso, um livro de papel branco do usado nos ofícios, três pares de coturnos, dois ou três botões caídos das calças e o capote já nosso conhecido. Só Deus sabe para quem tudo isso ficou; supomos, aliás, que não interessa aos leitores este pormenor da nossa narrativa. Levaram Acaqui Acaquievich a enterrar. E Sampetersburgo ficou sem Acaqui Acaquievich, como se nunca ali tivesse existido.
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