OS MORTOS - JAMES JOYCE
Seu rosto vermelho aproximara-se com excessiva intimidade e a voz descambara para o rude sotaque de Dublin, de forma que as moças, instintivamente, receberam em silêncio suas palavras. Senhorita Furlong, aluna de Mary Jane, perguntou à senhorita Daly qual o nome da linda valsa que ela tocara e Browne, vendo-se ignorado, voltou-se para os rapazes que se mostravam mais atenciosos.
Uma jovem muito corada, de vestido lilás, entrou na sala batendo freneticamente as mãos e gritando:
__ Quadrilha! Quadrilha!
Logo atrás, apareceu tia Kate:
__ Dois cavalheiros e três damas, Mary Jane!
__ Oh! Aqui estão o senhor Bergin e o senhor Kerrigan - disse Mary Jane. __ Senhor Kerrigan, quer acompanhar a senhorita Power? Senhorita Furlong, posso arranjar-lhe um par? Senhor Bergin. Pronto, agora está completo.
__ Três damas, Mary Jane - insistiu tia Kate.
Os dois rapazes perguntaram às moças se podiam ter a honra e Mary Jane voltou-se para a senhorita Daly.
__ Senhorita Daly! Você está sendo muito gentil. Depois de tocar duas valsas! Mas há tão poucas mulheres esta noite.
__ Não estou cansada, senhorita Morkan. Não se preocupe.
__ Mas tenho um par encantador para você. Senhor Bartell D'Arcy, o tenor. Mais tarde, eu o farei cantar para nós. Toda Dublin está delirando por ele.
__ Uma voz maravilhosa, maravilhosa - disse tia Kate.
O piano começara duas vezes o prelúdio para a primeira figura e Mary Jane apressou-se em levar os pares. Mal haviam saído e tia Júlia entrou preocupada na sala, olhando para trás.
__ Que aconteceu? - perguntou tia Kate preocupada __ Quem está aí?
Júlia, que carregava uma pilha de guardanapos, voltou-se para a irmã e disse, como se a pergunta a tivesse surpreendido:
__ É Freddy Gabriel está com ele.
Com efeito, logo atrás dela vinha Gabriel dirigindo Freddy Malins. Este último, um jovem de quase quarenta anos, da mesma altura e tamanho de Gabriel, tinha ombros bastante largos. Seu rosto era gordo e pálido, corado apenas nos lobos carnudos da orelha e nas largas narinas. Tinha feições grosseiras: nariz chato, testa curva e luzidia lábios grossos e úmidos. Seu olhar pesado e os cabelos em desordem davam-lhe um ar sonolento. Ria alto e francamente da história que acabara de contar na escada a Gabriel, esfregando o olho esquerdo com o punho.
__ Boa noite, Freddy - disse tia Kate.
Freddy respondeu ao cumprimento de um modo que pareceu pouco cerimonioso devido sua crônica rouquidão e, vendo que Browne lhe arreganhava os dentes lá no canto, atravessou a sala com passos incertos e começou a repetir em voz baixa a história que contara a Gabriel.
__ Ele não está muito ruim, está? - perguntou tia Kate.
Gabriel tinha o semblante carregado, mas recompôs-se imediatamente e respondeu:
__ Oh, não! Quase nem se nota.
__ Ele não é mesmo terrível? - disse ela. __ Pensar que a mãe o fez jurar que não iria beber na passagem de ano. Venha, Gabriel. Vamos para o salão.
Antes de deixar a sala em companhia de Gabriel, fez um sinal com o dedo para Browne, que balançou a cabeça em resposta e disse para Freddy, quando a viu sair:
__ Agora, Freddy, vou preparar-lhe um bom copo de limonada, para reanimá-lo.
Freddy, que chegava ao clímax da história, recusou o oferecimento com certa irritação. Browne, porém, distraindo-lhe a atenção para um desarranjo na roupa, encheu o copo de limonada e entregou-o a Freddy. Sua mão esquerda aceitou-o mecanicamente, enquanto a direita, também mecanicamente, ocupava-se em ajustar a roupa. Browne, cujo rosto mais uma vez se contraíra numa expressão divertida, preparou para si um copo de uísque, enquanto Freddy, antes mesmo de atingir o desfecho da história, explodia num acesso de riso e, colocando o copo de limonada, intacto e transbordante, sobre o bufê, começou a esfregar o olho esquerdo, repetindo a última frase, tanto quanto a tosse e o riso lhe permitiam.
Gabriel não conseguia prestar atenção à peça clássica que Mary Jane executava, cheia de escalas e passagens difíceis para a sala silenciosa. Gostava de música, mas a peça não tinha melodia para ele e duvidava que tivesse para os outros, embora todos houvessem implorado a Mary Jane que tocasse alguma coisa. Quatro rapazes, que ao som do piano tinham vindo do bufê até a porta, afastaram-se silenciosamente, dois de cada vez, após alguns minutos. As únicas que pareciam interessadas eram a própria Mary Jane, cujas mãos corriam pelo teclado ou erguiam-se dele num gesto de sacerdotisa em súbita imprecação, e tia Kate, sentada a seu lado para virar as páginas.
Os olhos de Gabriel, feridos pelo reflexo do lustre no assoalho encerado, desviaram-se para a parede atrás do piano. Havia ali uma gravura da cena do balcão de Romeu e Julietae, ao lado dela, um quadro com os dois principezinhos assassinados na Torre, que tia Júlia bordara com lã vermelha, azul e marrom, em seu tempo de menina. Elas certamente haviam aprendido esse gênero de trabalho durante um ano inteiro, na escola que frequentaram. Sua mãe também bordara, como presente de aniversário pequenas cabeças de raposa, num colete de moire púrpura, forrado de cetim marrom e com botões em forma de amor. Era estranho que ela não tivesse talento para música, embora tia Kate costumasse chamá-la o cérebro da família Morkan.
Tanto Kate quanto Júlia haviam sempre deixado transparecer certo orgulho pela irmã grave e imponente. Havia um retrato dela diante do espelho do aparador. Estava com um livro aberto sobre os joelhos e mostrava alguma coisa a Constantine que, vestido à marinheira, sentara-se aos seus pés. Ela mesma escolhera os nomes dos filhos, pois era muito ciosa do decoro da vida familiar. Graças a ela, Constantine era hoje pároco de Balbriggan e Gabriel diplomara-se na Universidade Real. Uma sombra percorreu-lhe o rosto ao lembra-se da obstinada oposição que a mãe fizera ao seu casamento. Certas frases ferinas machucavam-no ainda na memória. Ela afirmara, certa vez, ser Gretta uma provinciana interesseira e isso não era verdade. Gretta é quem cuidara dela durante a longa e fatal enfermidade, em Monkstown.
( Tradução de Hamilton Trevisan )
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