O CAPOTE / NICOLAI GOGÓL / DA LISTA DOS CEM MELHORES CONTOS DO MUNDO / PARTE 3

O CAPOTE - PARTE 3
    Ao entrar na antecâmara, Acaqui Acaquievich viu uma fila de taças. Entre estas, a meio do compartimento, fervia um samovar, que espargia volutas de vapor. Pelas paredes estavam pendurados os vários capotes e agasalhos, alguns dos quais tinham golas de castor ou de veludo. Ouviam-se por detrás da parede ruídos e diálogos, que se tornaram mais próximos quando um criado abriu a porta e saiu com chávenas e taças vazias, uma compoteira e uma bandeja com pastéis. Concluía-se que os funcionários se encontravam reunidos já há algum tempo e que acabavam de tomar a primeira chávena de chá.
     Acaqui Acaquievich despiu o capote sozinho e penetrou no salão; ante ele resplandeceram as velas, os funcionários, os cachimbos, as mesas de jogo, e surpreenderam-no confusamente os diversos ruídos; ouvia-se em todas as direções rumor de conversas e movimentos de cadeiras.
      Permaneceu atônito no centro do salão, pensando no que devia fazer. Mas já tinham reparado nele; rodearam-no, com alguns gritos, e levaram-no à antecâmara, para que lhes mostrasse o capote. Acaqui Acaquievich encontrava-se um tanto aflito, mas, como homem de bom coração, não pôde deixar de alegrar-se ao ver como todos elogiavam o seu capote. Depois, claro está, deixaram-no a ele e ao seu capote e voltaram para as mesas de jogo.
     Tudo aquilo - ruído, conversação, grande número de convivas - era para Acaqui Acaquievich como que um sonho. Não sabia verdadeiramente o que experimentava, nem onde havia de colocar as mãos, os pés, o seu próprio ser; por último, aproximou-se dos jogadores, olhou as cartas, contemplou ora um, ora outro, e pouco depois começou a bocejar, sentindo que se aborrecia, tanto mais que havia passado há muito a hora a que costumava deitar-se. Quis, por conseguinte, despedir-se do dono da casa, mas não lho consentiram, alegando que tinha de beber uma taça de champanhe em honra do novo elemento da sua indumentária.
    Uma hora mais tarde foi servida a ceia, composta de fiambre, vitela, empada, pastéis e champanhe. Acaqui Acaquievich teve de beber duas taças, sentindo que, depois delas, se tornava ainda mais alegre e ruidoso tudo quanto o cercava; entretanto, não se esqueceu de que dera já a meia-noite, e, portanto, muito tarde para estar fora de casa.
  A fim de que ninguém o obrigasse a permanecer ali, saiu silenciosamente do salão e procurou o seu capote, que, não sem íntimo desgosto, encontrou caído no chão; apanhou-o, sacudiu-o, limpou-o, pô-lo pelos ombros, desceu as escadas e encontrou-se ao ar livre.
    Na rua tudo estava iluminado. Algumas tabernas (que são os clubes dos porteiros e gente parecida) achavam-se ainda abertas; das outras, já fechadas, saiam longos feixes de luz por entre os interstícios das portas, mostrando que não estavam sem freguesia, criados certamente que se entretinham a falar e a dizer mal dos patrões.
    Acaqui Acaquievich caminhava com alegre disposição de ânimo e quase se sentiu capaz de correr atrás de uma dama que passou veloz por diante dele, dama cujo corpo se lhe afigurou extraordinariamente flexível. Dominou-se, no entanto, e prossegui muito lentamente, admirado de si próprio. 
     Em breve se estenderam ante ele as ruas desertas, onde de dia não se notava alegria alguma, quanto mais de noite. Apareciam-lhe agora mais profundas e isoladas, luziam os candeeiros cada vez menos, porque já o azeite se ia esgotando; começavam a surgir as casas de madeira dos bairros mais pobres; em parte alguma se via vivalma; a única luz era agora a que refletia a neve do chão; e sobre a neve recortavam-se lugubremente as sombras das baixas choupanas, de janelas cerradas. Aproximava-se do lugar em que a rua desembocava numa praça enorme, mal se podendo ver as casas do outro lado, como se se tratasse de um terrível deserto.
     Ao longe (só Deus sabe onde!) brilhava o fogo de alguma guarita, que parecia encontrar-se nos confins do mundo. A boa disposição de Acaqui Acaquievich passara já. Penetrou na praça, não sem certo terror, como se o seu coração pressentisse perigo. Olhou para trás de si e para o lado; em volta via-se apenas o espaço deserto. "É melhor não olhar", pensou.
     Continuou a avançar, de olhos fechados. Quando os abriu, para ver se estava já próximo do outro extremo da praça, observou que tinha diante de si gente de bigode. Mas nada mais pôde distinguir. Toldaram-se-lhe os olhos e recebeu uma pancada no peito. "Este capote é meu!", disse um dos homens, agarrando-lhe pela gola. Acaqui Acaquievich quis ainda gritar: "Ó da guarda!", mas o outro colocou-lhe a mão na boca e disse: "Desgraçado de ti se gritas!" O nosso herói só se deu conta de que lhe arrancavam o capote e de que lhe davam um violento pontapé. Caiu então de costas na neve e nada mais sentiu. 
      Voltou a si minutos depois, mas já não viu ninguém. Sentindo a frialdade do chão e a falta do capote, começou a gritar; parecia entretanto que a sua voz se perdia naquela praça enorme e não atingia o outro lado. 
     Desesperado, sem parar de gritar, pôs-se a correr em direção à guarita, atrás da qual estava um soldado apoiado à sua arma; parecia perguntar-se, com curiosidade, quem diabo era aquele que vinha assim a correr e a gritar com voz humana. 
     Acaqui Acaquievich chegou, ofegante, junto dele e começou, com voz aguda, a clamar que se tinha embriagado e que nada mais sabia senão que dois homens o tinham roubado. O soldado replicou nada ter visto; tinha observado apenas que dois homens o deixavam no meio da praça, mas supusera que eram seus amigos; acrescentou que, em vez de queixar-se ali, em vão, devia ir no dia seguinte à esquadra, onde por certo investigariam acerca de quem lhe roubara o capote.
     Acaqui Acaquievich dirigiu-se para casa num estado lamentável: os cabelos, que ainda lhe restavam, em pequenas quantidades, nas têmporas e na nuca, totalmente desgrenhados; o peito, as costas e as calças cobertos de neve. 
     A velha patroa, ao ouvir o tremendo ruído do batente da porta, saltou rapidamente da cama, calçando apenas uma meia, e foi a correr abrir aquela, segurando pudicamente a camisa contra os seios; mal abriu, ao ver Acaqui Acaquievich, esqueceu o seu pudor. 
     Quando o hóspede contou o que lhe sucedera, ela cruzou as mãos de espanto e disse ser preciso recorrer sem demora ao capitão da polícia, "porque o tenente nada mais faz que ouvir, fazer muitas promessas e dar tempo ao tempo"; melhor era ir diretamente ao capitão, de quem ela tinha boas informações, pois Ana, que fora sua cozinheira estava agora de ama em casa dele. Acrescentou que o via muitas vezes, principalmente ao domingo, na igreja, onde rezava com muita devoção e, ao mesmo tempo, olhava amigavelmente para toda a
gente, parecendo um homem bondoso.
      Depois de ouvir este conselho, Acaqui Acaquievich, amargurado, retirou-se para a sua habitação. Como ele passou a noite... compreendê-lo-á quem tenha capacidade de se imaginar na situação de uma outra pessoa.
     Na manhã seguinte, muito cedo, dirigiu-se ao Comissariado, mas disseram-lhe que o capitão estava ainda a dormir; foi às dez e disseram-lhe outra vez: "Está a dormir"; foi às onze e responderam-lhe: "Não está"; à hora de comer... Mas os amanuenses não lhe consentiam de maneira nenhuma vê-lo, e queriam saber exatamente do que se tratava e o que acontecera; de maneira que Acaqui Acaquievich quis provar, uma vez na vida, que tinha energia e disse, com ar decidido, que precisava de falar ao inspetor, que contínuos agaloados, que abriam a porta a quem chegava: e convém saber que nesta importante secretaria de Estado pouco mais cabia que uma vulgar
secretária.
    O modo de receber, assim como os gestos e hábitos da "alta personalidade", eram graves e majestosos, mas um tanto complicados. O fundamento principal do seu sistema era a disciplina. "Disciplina, disciplina e... disciplina", costumava ele dizer. E ao repetir pela terceira vez esta palavra fixava intensamente a pessoa a quem se dirigia, ainda mesmo sem o menor motivo para tal, pois os dez funcionários de que se compunha o mecanismo burocrático da repartição andavam sempre num verdadeiro terror.
      A conversação da "alta personalidade" com os inferiores recaia, em geral, no tema disciplina e compunha-se de frases deste gênero: "Como se atreve você? Sabe com quem está a falar? Sabe bem quem é que se encontra diante de si?" Era, noutros aspectos, homem de bom coração, afável e até serviçal para os da sua classe; mas a patente de general fizera-lhe perder o senso comum. Desde que recebera a nomeação, andava desvairado, descontrolara-se e não se apercebia bem do que se passava nele próprio. 
     Se tratava com iguais, era um homem correto, ordenado, e até, sob muitos aspectos; inteligente, mas, apenas se encontrava num grupo de gente de situação social inferior, já não sabia onde tinha a mão direita: tornava-se hirto e silencioso e a sua situação era tanto mais digna de dó quanto é certo que ele era o primeiro a saber que poderia passar o tempo de maneira muito mais agradável. Transparecia, às vezes, nos seus olhos o desejo de entabular uma conversa interessante com os funcionários; mas paralisava-o este pensamento: "Não seria excesso da sua parte? Não seria excesso de familiaridade, com que a sua dignidade perigasse?" Como consequência de tais reflexões, permanecia eternamente só, impenetrável, limitando-se a emitir um ou outro monossílabo. Conquistou por esta razão o título de "o homem que se aborrece".

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