O CAPOTE - ÚLTIMA PARTE
Desapareceu e ocultou-se um ser a quem ninguém protegera, quem ninguém dedicara afeição e que nem sequer atraíra o interesse de qualquer naturalista, um desses indivíduos que não desdenham pôr num alfinete a mosca vulgar e observá-la ao microscópio; um homem que atraíra a zombaria dos seus companheiros de repartição e que desceu à sepultura sem ter realizado qualquer ato excepcional; antes pelo contrário, a quem nada importava, ainda que no fim da sua vida brilhasse para ele a luz sob a forma de um capote, reanimando um momento fugaz a sua pobre vida, e sobre quem caiu depois a desgraça em grau superior às suas forças, como cai também, por vezes, sobre os mais poderosos da Terra...
Poucos dias depois da sua morte compareceu na sua residência um contínuo, enviado pela repartição, com ordem para se apresentar imediatamente; exigia-o o chefe; mas o homem teve de voltar sozinho, levando a informação de que o funcionário não podia apresentar-se. Tendo-lhe sido perguntado: "Por que não pode?", respondeu estas palavras: "Não pode: morreu; há quatro dias que o enterraram."
Desta maneira se conheceu na repartição a morte de Acaqui Acaquievich, e no dia seguinte já estava sentado no seu lugar um novo funcionário, muito mais alto, que não desenhava as letras em linhas tão retas, mas, pelo contrário, em linhas muito mais inclinadas e contrafeitas.
Mas quem poderia imaginar que ainda não dissemos tudo acerca de Acaqui Acaquievich, condenado a tornar-se famoso alguns tempos depois da morte, como recompensa de uma vida que passou ignorada? Sucedeu efetivamente isso, e a nossa pobre história tem uma abrupta conclusão.
Começou a difundir-se por Sampetersburgo o rumor de que na ponte de Kaliuquine, nas ruas vizinhas e nos bairros a que ela conduzia aparecia de noite um fantasma, com aspecto de funcionário público, que procurava um capote roubado e tirava capotes de todos os ombros, sem diferençar classes ou profissões: os de gola de pele de gato, de castor, de coelho, de raposa ou de qualquer outra espécie de pele.
Um dos funcionários da repartição viu com os seus próprios olhos o fantasma e reconheceu imediatamente o defunto Acaqui Acaquievich; mas produziu-lhe este tal terror que se pôs a correr quanto podia, sem se atrever a voltar a olhar para o fantasma, que o ameaçava com o dedo espetado.
De todos os lados surgiam queixas de indivíduos a quem tinham desaparecido os capotes, e isso acontecia a titulares e também às altas gentes do Paço; muitos tinham-se até constipado em consequência do roubo.
A polícia fez investigações para se apoderar do defunto, vivo ou morto, e castigá-lo severamente, para exemplo de outros, mas a diligência não resultou.
Assim, por exemplo, um polícia de vigilância a uma das pequenas ruas de Kiriuquine, tendo agarrado o defunto pela gola (no momento em que este ia a roubar o capote de certo músico, que então tocava flauta), chamou em seu auxílio outros guardas de ronda, enquanto tirava do bolso a caixa de rapé para encher o nariz, que já lhe gelara seis vezes; mas o rapé devia ser de tal qualidade que nem sequer o morto pôde suportá-lo.
Mal o polícia, fechando com o dedo a narina direita, meteu o rapé na esquerda, o defunto espirrou tão fortemente que lançou salpicos pelos olhos. E enquanto o polícia esfregava os olhos com as mãos, o defunto desaparecia. Chegaram a duvidar se, na verdade, o tinham tido na mão.
Desde aí, os polícias amedrontaram-se tanto com as almas do outro
mundo que não se atreviam a apanhá-las nem sequer vivas, e só de longe gritavam: "Olá, segue o teu caminho!"
E o funcionário defunto começou a aparecer também na ponte Kaliuquine, suscitando terror às pessoas tímidas.
Mas abandonamos por completo a "alta personalidade", verdadeira
responsável por que a nossa história tenha tido um fim fantástico. Para honra da verdade, devemos dizer, antes de mais nada, que a "alta personalidade", depois da morte do pobre Acaqui Acaquievich, sentiu alguma compaixão. A piedade não lhe era completamente estranha; o seu coração sentia impulsos de muito boas ações; simplesmente a sua categoria não lhe permitia segui-los.
Mal o amigo que o visitara saiu do seu gabinete, começou a pensar no pobre Acaqui Acaquievich. E desde então, muitas vezes, quase diariamente, evocava Acaqui Acaquievich, pálido, humilde, incapaz de reagir à sua repreensão.
Aquela recordação causava-lhe tão grande intranquilidade que, decorrida uma semana, resolveu enviar um funcionário a casa de Acaqui Acaquievich para se informar do que havia, como estava e se nalguma coisa podia ajudá-lo.
Ao saber que morrera de febre, de um dia para o outro, comoveu-se profundamente, escutou as censuras da sua consciência e esteve um dia inteiro de mau humor.
Desejando distrair-se e esquecer aquela desagradável impressão, foi, à noite, a casa de um amigo, o que se refletiu de um modo admirável no seu estado de espírito.
Esteve animada a conversa, que decorreu agradável e amistosa; numa palavra, passou a noite muito satisfeito. Ao cear, bebeu duas taças de champanhe, que, como se sabe, é um excelente meio de aumentar a alegria.
O champanhe, modificando-lhe o humor, decidiu-o a ir visitar certa senhora sua conhecida, Catarina Ivanovna, uma alemã, segundo parece, com quem mantinha afetuosas e excessivamente íntimas relações. Devemos acrescentar que a "alta personalidade" não era já um homem novo e solteiro; era casado e todos o consideravam um honrado pai de família. Tinha um filho funcionário na Chancelaria e uma filha, bonita rapariga de 16 anos, com o nariz um pouco adunco, que vinha todos os dias beijar-lhe a mão, dizendo: "Bonjour, papa!" A esposa, que não se pode dizer que fosse velha ou feia, estendia-lhe a mão para que ele lha beijasse; depois, voltando-se para o outro lado, beijava-lhe ela, por seu turno, a mão.
Mas a "alta personalidade", que se encontrava, aliás, plenamente satisfeito com as ternuras domésticas, achou, no entanto, muito importante, para se impor aos amigos, ter uma amante num bairro da cidade afastado daquele onde vivia.
A amante não era nem mais nova nem mais fresca do que a esposa, mas estes enigmas existem no mundo, e não é nosso propósito esmiúça-los. Assim, pois, a "alta personalidade" saiu de casa do seu amigo e, sentando-se na carruagem, disse ao cocheiro: "Para casa de Catarina Ivanovna"; e, embrulhando-se no seu quente capote, permaneceu nesse estado agradável, como não é possível imaginar melhor para um russo, em que nada se pensa e em que, entretanto, as ideias se agitam na cabeça, cada qual mais lisonjeira, sem haver o penoso encargo de as seguir ou coordenar.
Toda a sua alegria consistia em recordar o sítio onde passara a noite e todos os ditos com que fizera rir às gargalhadas o restrito e amável círculo dos seus amigos; repetia a meia voz muitos desses ditos espirituosos e observava que conservavam toda a graça dos antigos tempos, não podendo assim deixar de rir-se sozinho com vontade.
Incomodou-o subitamente a ventania que se levantara, Deus sabe donde e por quê, fustigando-o fortemente no rosto, atirando-lhe flocos de neve aos olhos, bufando-lhe na gola do capote como na vela de um navio, ou, pelo contrário, colando-lha inesperadamente à cara com força sobrenatural, de tal modo que se agitava constantemente de uma maneira e de outra, sem poder libertar-se.
De repente sentiu a "alta personalidade" que alguém o agarrava muito fortemente pela gola do capote. Ao voltar-se, notou que era um indivíduo de pequena estatura, com um fato velho e coçado, e reconheceu com terror Acaqui Acaquievich.
O rosto do funcionário estava pálido e o olhar era bem o de um defunto. Mas o terror da "alta personalidade" não teve limites quando viu que a boca do morto se abria e, exalando um odor de sepultura, lhe dirigia estas palavras: "Sempre te apanhei! Agarrei-te finalmente pela gola! Preciso do teu capote! Não quiseste preocupar-te com o meu, e até me insultaste! Dá-me agora o teu!"
A pobre "alta personalidade" por pouco não morreu de susto.
Era bem conhecida a sua severidade para com os inferiores e, considerando o seu aspecto enérgico, todos diziam: "Está ali uma personalidade!" No entanto, aqui, como muitos outros que posam de heróis, sentia tal pavor que, não sem razão, começou a recear cair doente. Ele próprio despiu o capote e disse para o cocheiro, com voz alterada: "Segue para casa! Sem demora!" Mal o cocheiro ouviu aquele tom de voz, que o amo só empregava nos momentos decisivos e que era acompanhado muitas vezes de alguma coisa de mais efetivo, ocultando a cabeça entre os ombros, brandiu o chicote e a carruagem despediu como um raio.
Seis minutos depois achava-se a "alta personalidade" à porta da cocheira. Pálido, amedrontado e sem capote, em vez de visitar Catarina Ivanovna, entrou em casa, ocultou-se num quarto interior e passou a noite muito inquieto.
No dia seguinte de manhã, à hora do pequeno-almoço, a filha, ao vê-lo, disse imediatamente: "Como estás pálido, papá!"; mas o papa calou-se e a ninguém confessou palavra do sucedido, nem acerca do lugar onde estivera, nem onde se dirigira depois. Aquele sucedido impressionara-o fortemente.
E muito poucas vezes mais lhe ouviram dizer: "Como se atreve o senhor? Sabe quem tem diante de si?"; e, se tal acontecia, nunca era sem se informar antes do que se tratava.
E o mais notável foi, todavia, que a partir daquele dia não voltou a aparecer o funcionário defunto: talvez porque o capote do general lhe ficava perfeitamente. O certo é que nunca mais se ouviu falar de um roubo de capote do mesmo gênero.
Muitos, já se vê, não queriam ainda tranquilizar-se e contavam que em certos sítios da cidade mais afastados aparecia o funcionário defunto.
Um polícia viu, com os seus próprios olhos, sair o fantasma de uma casa; mas, achando-se um tanto debilitado e falto de forças, não se atreveu a detê-lo e limitou-se a segui-lo de longe.
O fantasma, em determinado sítio, deu uma volta, olhou o polícia e perguntou-lhe: "Que desejas?", mostrando um punho que não é possível observar nos seres vivos.
O polícia replicou: "Nada", e voltou para trás. O fantasma, que era, no entanto, muito mais alto e tinha uns imensos bigodes, dirigiu-se com grandes passadas para a ponte de Obujo, desaparecendo nas trevas da noite.
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