CASA DE MULHERES - DAVID GONÇALVES / ÚLTIMA PARTE

CASA DE MULHERES - ÚLTIMA PARTE

    O Pastor, já visivelmente embriagado, acercou-se de Matildes, cravando suas grandes mãos nos braços dela, quase a imobilizando. Ela se voltou e deparou com o paredão na sua frente. Quis sair das garras, mas os dedos fortes a apertavam como se ela fosse minhoca.
     __ Então, o que pensa que é? Por acaso, é mais do que as outras? Chegou há pouco e já quer sentar na janela do ônibus?
    Saía da boca do Pastor um bafo azedo, como se em seu estômago tivesse rebentado uma dúzia de ovos chocos.
     __ Me largue! Ou chamo Madame Teresa...
     __ Pode chamar. Duvido que ela faça alguma coisa.
     __ Me largue, Satanás!
     __ Tem o rei na barriga, sua puta!
     Ouviu-se a voz de Madame Teresa às suas costas.
     __ O que está havendo, Pastor?
     __ Quero essa mulher hoje. Ela sentirá o peso do meu bastão. Mas ela se faz de folgada. Está escolhendo galo!
    __ Largue a menina. Ela está com outro neste momento. Pegue outra. Veja, aquelas sentadas no divã.
    __ Que se dane! Eu quero esta - e não largava os braços de Matildes. -- Essas mulheres estão aqui para o que der e vier.
    __ Calma, Pastor, eu já disse, ela está acompanhada. Escolha outra. Se quer encrenca, terá encrenca.
      A voz de um desconhecido ecoou firme junto aos três.
     __ Deixe a mulher em paz. Madame Teresa já disse o que tinha que dizer. Por acaso, é surdo?
   Voltaram-se. Doca se colocou na frente, mirando frontalmente a cara quadrada do pastor. Mediram-se as forças. Depois do Pastor analisar o corpo de Doca, os braços retesados de nervos, largou os braços de Matildes. Onde colocara os dedos grandes e grossos, ficaram as marcas vermelhas.
    __ Espero não encontrá-lo por aí - soletrou o Pastor, sem tirar os olhos avermelhados de Doca, depois se retirando vagarosamente, como se fizesse uma enorme força.
    __ Não me escondo de nada - arrematou Doca, também o mirando e assistindo  sua retirada lentamente.
    __ Bebe como um cavalo e quer respeito! - vociferou Madame Teresa, aliviada, dando o incidente por encerrado. - Preciso cuidar desses marmanjos como se fossem meninos...
     Neste instante, porém, Matildes agarrou uma garrafa de cerveja e, sem ninguém esperar, agrediu a cabeça quadrada do Pastor, que bambeou e tombou no assoalho rústico como um saco de areia, no meio de estilhaços de vidro. Todos quedaram assustados.
     __ Sua louca! - berrou Madame Teresa. - O que tem nessa cabeça? Por acaso, esterco de porco?!
     Doca a segurou e, com força, a arrastou porta fora, para respirar a brisa da noite morna. Pontilhavam as estrelas no céu. Alguns homens bêbados mijavam por detrás das árvores; outros, sem escrúpulos, vomitavam. Uma cachorra no cio era perseguida por vários vira-latas.
       O Pastor, esborrachado no assoalho, tentava levantar-se, mas se sentia zonzo, e a pequena multidão ao redor não o deixava respirar direito. Passou a grande mão na cabeça e o sangue escorregou por seus dedos grossos e grandes. O que tinha acontecido?
     __ Vamos, seus molengas, ajudem o homem a se levantar! - ordenou Madame Teresa, aflita. - E tragam ele na outra sala. O que estão esperando?
      Dois garimpeiros levantaram o Pastor do chão. Pesava como porco gordo. Aos poucos, conseguiram depositá-lo num banco de madeira na outra sala, onde Madame Teresa, já um pedaço de pano nas mãos, começou a enxugar o sangue que escorria pelo cabelo e salpicava a testa larga com alguns filetes ziguezagueando.
     __ Joselito! Joselito! Coloque música pra animar a moçada! Afinal, ninguém está num velório...
       O bolero invadiu o ar empestado:
Hoje eu te vi
Toda marcada pela vida.
Triste, abatida
Caminhando devagar.
      Os casais dançavam ao compasso e descompasso com movimentos de animais de duas cabeças. Lábios polpudos e cansados beijavam com a língua como se grudassem selos. Os homens se deliciavam com o peso dos seios mornos e dos ventres arredondados.
    De repente, quando tudo era lascívia e despudor, o grito de mulher carregado de horror:
     __ Socooorrroooooo!!! Ai, meu Deus!.... Meus ovários.... Aí, ele me esfaqueou!!! Socoooorrroooooooo!!!!!, pelo amoooorrrr de Deeeeuuussss.....
    Girava no salão como galinha degolada, segurando intestinos e ovários, enquanto o sangue jorrava misturado com fezes.
     Homens e mulheres corriam para ver. A mulher caíra de joelhos e se sacudia como galinha degolada abruptamente, revirando os olhos e deixando o branco dos glóbulos aparecer como bolas de gude. Estampara-se o medo nas faces, com a língua de fora, gritando, gritando, tanto era a dor. A dentadura postiça saltou da boca e rolou pelo assoalho. Os espectadores ficaram confusos: não sabiam se riam ou se recolhiam a dentadura. Os mais bêbados não aguentaram e riam abertamente, bocas abrindo como sanfonas.
     Madame Teresa abandonou o Pastor e veio correndo, desesperada, feito galinha choca atrás de pintinhos.
     __ Mas que desgraça é essa?!
     Ninguém sabia. Só diziam:
     __ Ela está esfaqueada! Olha a barrigada de fora!
   __ Quem fez isso? Logo na minha casa! Tão distinta, tão ordeira... Ai, que o diabo está solto nesta noite sem fim...
      O agressor já não se encontrava por ali. Alguém ouvira passos largos pela porta da frente e uma correria na rua estreita e tortuosa. Já ganhara a rua em poucos minutos, deixando para trás a confusão.
       __ Socoorroooo.... Meus.... Deus.....
    A voz morria aos poucos e os olhos reviravam, deixando o branco dos glóbulos à mostra, igual a certos cegos.
        __ Me ajudem, seus canalhas! O que estão esperando?
      Madame Teresa agarrou-a por trás, debaixo dos braços, quando ela acabava de dar o último sinal de vida, com a ajuda de dois homens, que a seguraram pelas pernas, um agarrado em cada perna gorda e cheia de varizes, e a arrastaram para os fundos, num quartinho de tábuas sem mata juntas  onde havia uma pilha de sacos de carvão. O corpo se ajeitou entre pedaços de madeira e sacos de carvão como se fizesse parte do mesmo universo.
       __ Bela porcaria! Como os homens são bestas! Sentir ciúmes por uma mal-acabada assim...
     Madame Teresa, suando, quando voltou à sala e viu o ar de velório e o diz-que-diz desenfreado, berrou a todo pulmão:
     __ Mas que diabos! Quem mandou parar a música?! Isto aqui não é velório! Não houve nada, tudo está resolvido...
      Entretanto, todos olhavam-na assustados.
      __ Joselito, oh Joselito! Por que parou a música?
     Trêmulo, sem balançar o quadril, Joselito foi até o aparelho de som e colocou a música que estava à disposição, sem escolha alguma, que todas as músicas ali falavam de amores perdidos e traições.
     Aos poucos, homens e mulheres dançavam e se apertavam, e lábios carnudos e sensuais, cheirando a álcool e a cigarro barato, voltavam a se grudar. Os bêbados já não viam mais nada. A empregada - gorda e balofa -, com uma vassoura e panos molhados, enxugava o assoalho, limpando as manchas de sangue e respingos de fezes.
     Quando Madame Teresa pressentiu que a situação desastrosa estava sob controle, foi apressadamente ao encontro do Pastor, que se havia postado na frente da mesa de madeira, no quarto dos fundos, com a testa manchada de sangue quase seco, recitando texto da bíblia:
    __ “Quão fraco é o teu coração, diz o Senhor Deus, fazendo tu todas estas coisas, só própria de meretriz descarada. Edificando tu o teu prostíbulo de culto à entrada de cada rua e os teus elevados altares em cada praça, não foste sequer como a meretriz, pois desprezaste a paga....”
     A voz era pastosa e o tom era acusativo, tanto que ele esticava a mão direita, na direção de um público imaginário, condenando. Ao ver Madame Teresa, arriou o braço e se sentou.
     __ Por que não me trazem uísque? Eu já pedi, já implorei, clamei pelo Senhor, e ninguém me atende. Eu quero mais um uísque, é desse remédio que eu preciso. De tanto carregar os pecados dos fiéis, me acho cansado...
    __ Ora, seu pilantra! Primeiro, me pague! Se não pagar, sairá daqui, hoje, deveras esfolado vivo.
   __ Eu pago, eu pago, veja, tenho muito dinheiro - e, com dificuldade, tirou do bolso o maço de cédulas. - Sou rico, não vivo de esmola. Quero mais uísque, minha boca está seca!
     __ Primeiro, a grana.
    __ Jamais! - voltou a colocar o maço no bolso, mostrando certa lentidão e embaraço.
     __ Está bem, mais um só e a grana!
   Madame Teresa saiu para buscar a bebida. Quando voltou, ele voltara a declamar o texto bíblico:
    __ “... foste como a mulher adúltera, que, em lugar de seu marido, recebe os estranhos. A todas as meretrizes se dá a paga, mas tu dás presentes a todos os teus amantes; e o que fazes para que venham a ti de todas as partes adulterar contigo.”
     Parou a fala tortuosa. Rapidamente se apropriou do uísque e bebeu sofregamente.
       __ Isto que é vida! Mais um. Ainda estou com sede.
      __ Chega! Quero o dinheiro. Não me aporrinhe. A conta de ontem e a de hoje. Aqui não é casa de caridade!
     __ Rá-rá-rááá! Casa de caridade, esta é boa - quando ria, babava no canto esquerdo da boca. __ Sabe de uma coisa, Madame: eu quero aquela mulher! Do contrário, nunca verá a cor da grana. Entendeu? Ou quer que eu repita mais alto? E trate de me trazer um litro de uísque. Você está colocando água no copo. Está aguado igual mijo de cavalo. Rá-rá-rááá! Casa de caridade!
     __ Seu porco! Está babando como se tivesse aftosa!
     __ E daíííí? Sou baboso, sou gooossstoooso!
     __ Descarado e imundo!
   __ Venha aqui, sua meretriz velha! Veja como sou gooossstooooso... Exprimeeentaaa meu cajaaadooooo!
    Madame Teresa resolveu atendê-lo. Um litro de uísque, por que não? O cliente manda. Bêbado, ela sacaria o maço de cédulas do bolso. E tudo ficaria elas por elas. Ao retornar ao salão, Joselito veio dizer-lhe que Matildes não retornara. Fez que não ouviu. Já tinha muitos problemas para uma noite.
    __ Aquela bestalhona! - enfezou-se ao lembrar da morta socada no meio dos sacos de carvão. __ Mais despesas! Mais despesas!
    De manhã, rapidamente, enrolaria o cadáver numa rede e pedira ao coveiro para levá-la, sem preces, sem compaixão, enquanto as garotas dormiam.
    Ao voltar, novamente o Pastor recitava passagens bíblicas com a voz pastosa, de pé na ponta da mesa.
     __ “Contigo, nas tuas prostituições, sucede o contrário do que se dá com outras mulheres, pois não te procuram para prostituição, porque, dando tu a paga e a ti não sendo dada, fazes o contrário...”
     __ Pare com essas ofensas. Está aqui o litro. Beba à vontade.
     __ Ahhhh, booooaaa meninaaaa...
    Sentou-se do outro lado da mesa e esperou que ele tomasse a metade do litro. Dizia besteiras e declamava textos sagrados. De repente, tombou a cabeçorra quadrada sobre a mesa, dormindo. Ela se aproximou por trás e, afoitamente, enfiou a mão no bolso de suas calças. Ele se mexeu, acordando por uns segundos, fez menção de tirar rispidamente a sua mão do bolso, mas, em seguida, voltou a dormir. Madame Teresa sacou o maço de cédulas. Pegou a maior parte, muito mais do que ele devia, devolvendo no bolso algumas cédulas.
      Dirigiu-se ao salão. Àquelas horas, havia poucos clientes.
      __ Joselito, chame dois garimpeiros conhecidos.
     Carregaram o corpão mole do Pastor porta afora e o depositaram na rua tortuosa. Acordou com sol alto, de borco, quando cachorros o cheiravam. Pouco se lembrava do que tinha acontecido. Estranhou o corte no couro cabeludo e o cheiro de sangue ressecado.







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