O CAPOTE - PARTE 2
Enquanto caminhava, roçou por ele um limpa-chaminés, que o sujou no ombro, e caiu-lhe também em cima um pedaço de argamassa de uma casa em construção. Não se apercebia de nada, e, mais tarde, quando tropeçou contra um guarda municipal, ao mudar este a espingarda para tirar tabaco do bolso, despertou ao ouvir o mesmo admoestá-lo:
- Porque te metes debaixo do meu nariz? Não te chega a rua?
Aquilo obrigou-o a refletir e a dirigir-se a casa. Só então lhe foi dado concentrar os seus pensamentos e viu com clareza a sua presente situação; começou a falar com os seus botões, sem a anterior incoerência, mas meditando com lógica, como se revelasse a um amigo inteligente o mais intimo segredo do seu coração.
"Não", monologava Acaqui Acaquievich. "Não convém hoje tratar com
Petrovich. Hoje, a mulher... deve ter-lhe dado uma sova. O melhor será voltar domingo de manhã: depois da bebedeira da véspera estará ainda com o olho pisco e sonolento, e, como precisa de voltar a beber e a mulher não lhe dá dinheiro, se eu lhe passar uns rublos para a mão, deixa-se convencer e conserta-me o capote."
Assim ia monologando e assim se ia animando Acaqui Acaquievich. Esperou até ao domingo seguinte e, depois de ver a mulher de Petrovich sair de casa, entrou com ar decidido.
Custava muitíssimo a Petrovich, com efeito, abrir o seu único olho depois do que bebera na véspera, e cabeceava, sonolento; mas, apenas soube do que se tratava, pareceu que se apossara dele o Diabo.
- Não pode ser! - disse. - Tem de se lazer outro novo.
Acaqui Acaquievich meteu-lhe uns copeques na mão.
- Obrigado, senhor. Agora poderei fortalecer-me um pouco à sua saúde - disse o alfaiate. - E não se preocupe você com o capote: não serve para nada. Far-lhe-ei um novo; e, quanto ao preço, havemos de entender-nos.
Acaqui Acaquievich preferia que ele lhe cosesse o velho, mas Petrovich não
fazia caso das suas palavras e insistia:
- Far-lhe-ei um novo, com toda a perfeição; tenha confiança em mim, farei quanto puder. E, se for preciso, até lhe ponho botões de prata, pois agora estão na moda.
E Acaqui Acaquievich, vendo que não tinha outra solução senão fazer um capote novo, sentia um grande pavor na sua alma. Era necessário, tinha de ser, mas o dinheiro? Podia, certamente, contar com a gratificação que receberia nas próximas festas, mas esse dinheiro estava há muito já destinado. Necessitava fazer umas calças novas, pagar ao sapateiro uma dívida antiga de umas meias solas e, além disso, tinha de mandar fazer, sem falta, três camisas novas, duas das quais brancas; numa palavra, o dinheiro estava já destinado, e, ainda que tivesse um diretor compreensivo, capaz de conceder uma gratificação de quarenta e cinco ou cinquenta rublos, em vez de quarenta, o restante seria apenas uma insignificância para a soma de que necessitava para o capote - uma verdadeira gota de água no oceano.
Sabia perfeitamente que Petrovich costumava fazer preços exorbitantes, de tal modo que até a mulher não podia conter-se e exclamava: "Mas tu estás com o juízo todo? Umas vezes aceitas o trabalho por nada, e agora atreveste a pedir um preço que nem tu próprio vales." E sabia perfeitamente também que Petrovich acabaria por fazer-lhe o capote por oitenta rublos; entretanto, donde haviam de vir-lhe esses oitenta rublos? Metade ainda podia arranjar-se: metade, sim, e talvez um pouco mais; mas onde conseguir a outra metade? Antes de prosseguirmos, deve o leitor ficar a saber donde lhe podia vir a primeira metade.
Acaqui Acaquievich tinha o costume de reservar uma pequena quantia por cada rublo que gastava num mealheiro pequeno e fechado, com uma larga abertura. Ao cabo de cada meio ano contava o dinheiro em cobre e trocava-o por moedas de prata. Assim procedera durante muito tempo, e, desta maneira, ao fim de alguns anos reunira uma soma superior a quarenta rublos. A metade, por conseguinte, encontrava-se nas suas mãos; mas a outra metade? Onde obter os outros quarenta rublos?
Acaqui Acaquievich pensava, pensava, e chegou à conclusão de que o único recurso era reduzir até ao extremo possível todos os gastos ordinários durante um ano, abolir o hábito de tomar chá à noite, não acender a luz e, quando precisasse de copiar qualquer coisa, ir ao quarto da patroa e trabalhar à luz da sua vela; ao caminhar pela rua, fazer por andar o mais cuidadosamente possível e evitar as pedras ou pedaços de ferro, para não gastar rapidamente as solas dos sapatos; dar à lavadeira a roupa branca com a menor frequência possível e, para que se não gastasse, tirá-la logo ao chegar a casa e substitui-la pela camisa de dormir, que era de algodão, muito velha, e não podia durar muito mais.
Para dizer inteiramente a verdade, consignaremos que, a principio, lhe custou muito habituar-se a todas estas privações, mas depois, uma vez acostumado, chegou até a suprimir a refeição da noite; em compensação, alimentava-se espiritualmente, pensando no seu futuro capote.
A partir daí pareceu encontrar um complemento do seu ser, como se fora casar, ou como se se sentisse outro, como se não estivesse sozinho na vida, como se tivesse encontrado uma companheira que aceitasse seguir juntamente com ele pela estrada da vida; ora esta companheira não era outra senão o seu capote, de grosso forro, sem a menor passagem.
Tornou-se mais animado e de caráter mais firme, como um homem que se propôs um fim determinado. Do seu rosto e até dos seus passos desapareceram a dúvida e a indecisão. No seu olhar aparecia mesmo um certo lampejo; no cérebro passavam-lhe, como relâmpagos, pensamentos audazes e temerários: "Porque não havia de pôr a gola de marta?" Com estas ideias tornou-se um tanto distraído. Uma ocasião, ao copiar um oficio, esteve a ponto de fazer um erro; quase gritou em voz alta "ai!" e fez o sinal da cruz.
Uma vez por mês, pelo menos, visitava Petrovich, com o propósito de lhe falar acerca do memória começa a fraquejar e os nomes das ruas de Sampetersburgo misturaram-se-me de tal maneira na cabeça que me é muito difícil ordená-las. Seja como for, o fato é que vivia numa das melhores artérias da cidade, bastante longe de Acaqui Acaquievich.
Teve este de seguir primeiramente através de ruas solitárias, de iluminação escassa; mas, à medida que se aproximava do domicílio do funcionário, as ruas eram mais animadas, a iluminação maior e mais intensa; os viandantes iam e vinham, mais frequentes, multiplicavam-se as mulheres elegantemente vestidas; os homens levavam golas de pele de castor; quase não se viam já os bancos de madeira esburacada; os cocheiros, de libré dourada e gorro de veludo carmesim, sobre os trenós envernizados e forrados de peles, vagueavam pelas ruas... Acaqui Acaquievich admirava tudo aquilo como uma novidade; há muitos anos que não saía à noite.
Cheio de curiosidade, deteve-se diante de uma montra para ver o quadro de uma mulher belíssima a descalçar um sapato, mostrando assim toda a perna escultural; por detrás dela assomava a uma porta um sujeito de patilhas e com uma bonita barba ao gosto espanhol. Acaqui Acaquievich abanou a cabeça, sorrindo, e prosseguiu o seu caminho.
Porque sorria ele? Talvez por lhe serem desconhecidas todas as pessoas com quem cruzava, ou talvez por um sentimento oculto em relação a esse ambiente, ou então porque pensava como pensam funcionários: "Vá!
Estes Franceses! O que se diz! Que inveja causa! Há que ver, precisamente e tal!...", ou então seria isto que pensava: que não é possível perscrutar a alma de um homem e apreender tudo quanto pensa. Chegou por fim à casa em que habitava o ajudante do chefe. Este vivia à grande: a escadaria era iluminada por um magnífico candelabro; a habitação ficava no segundo andar.
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