Tragédia em ficção
Antonio Olinto
Numa lista dos melhores romances de todos os tempos, feita há cerca de 50 anos na Europa, "Judas, o obscuro", de Thomas Hardy, ocupou o sexto lugar. A pergunta foi renovada, em Paris e em Londres no começo deste novo milênio, e "Judas" manteve sua posição. Listas e respostas a inquéritos não passam de opiniões, mas a escolha de Hardy como romancista merece atenção porque, ao ser publicado, em 1895, "Judas" foi classificado, por uma parte ponderável da crítica literária inglesa, como "lixo".
A mesma palavra foi usada, por resenhadores, para classificar outro romance de Hardy, "Tess of the Durbevilles". O romancista declarou então: "Se esse tratamento continuar, deixarei de escrever romances".
A partir de 1895 até morrer, em 1924, nunca mais produziu uma só obra de ficção, passando a se dedicar inteiramente à poesia, gênero em que foi autor de uma obra-prima, um poema de mais de 500 páginas chamado "The Dynasts", que apareceu com o seguinte subtítulo: "Um drama épico da guerra contra Napoleão".
A história de Judas é uma tragédia, elaborada num tom de manso desespero, em que as palavras se mostram normais, sem rompantes de som ou de significado, revelando um sofrimento que é tão entranhado nos personagens que o leitor o aceita como necessário à história que o narrador conta. Uma das características da verdadeira tragédia é que ela não provoca a piedade.
Produz, sim, um estado da admiração, de espanto, de compaixão diante de como pode a vida criar situações que ficam muito além da resistência humana. A tragédia não faz chorar. Chama-se tragédia o horror de Édipo descobrindo o que fizera; o de Agamenon condenando à morte a própria filha; o da posição de Hamlet na ânsia/ medo/ sentimento de culpa diante da obrigação de matar o rei, marido de sua mãe. A tragicidade de "Judas, o obscuro" é ligada a um desespero que vem de dentro dos personagens, que o sentem como parte intrínseca, visceral, de si mesmos.
Nasceu Thomas Hardy a 2 de julho de 1840, numa casa rústica de dois andares, coberta de palha, erguida por seu avô perto de Dorchester, no sudoeste da Inglaterra. Ao nascer, foi o menino Thomas declarado morto pelo médico, até que uma enfermeira descobriu que havia um leve sopro de respiração no corpo imóvel. Por causa disto e por ser tão frágil, não se esperava que vingasse. Mas vingou e foi Thomas Hardy.
Fez seus estudos normalmente, tendo começado a escrever muito cedo. Seus poemas de amor, para as duas mulheres que primeiro amou - sua prima Tryphena e sua mulher Emma - são considerados por muitos como dos melhores da literatura inglesa, que os tem em grande quantidade.
O tradutor brasileiro de "Judas, o obscuro" foi Otávio de Faria. Ninguém melhor. Se fôssemos procurar, na ficção brasileira, romancistas que pertencessem à linha hardyana, o primeiro nome que me viria à memória seria exatamente o do autor de "Tragédia burguesa", que incluiu, no título geral de sua obra, a palavra "tragédia".
Outros dois - Lúcio Cardoso e Adonias Filho - poderiam pertencer à mesma família de criadores de personagens que se mostram inapelavelmente indefesos diante dos golpes do Mal. Narrando a história de um Fracassado - com maiúscula e tudo - consegue Hardy retratar de que maneira o sofrimento humano penetra, insoluvelmente, nas atividades normais de uma pessoa, fazendo-o de um modo lancinantemente trágico.
Na orelha que escreveu para a edição brasileira, chama João Etienne Filho a atenção para a cena mais dramática da história que fez lembrar quase a fatalidade da tragédia grega, mas só "quase" porque a tragédia de Judas é profundamente cristã, acentuando que, "até na simbologia do nome, Judas Fawley teria de ser o desamado, o fustigado, o maldito".
A obra de ficção de Thomas Hardy conseguiu, também em seus outros romances, revelar alguns dos segredos da permanência humana sobre a terra, que se esperam da obra de arte. Seus livros - "Mayor of Casterbridge", "Far from the madding crowd", "The return of the Native" - estão entre os grandes romances do século XIX, sendo impossível que se esqueçam trechos dos livros de Hardy como a do cachorro enlouquecido que, ao invés de guiar e proteger os carneiros sob sua guarda, leva-os ao precipício e à morte, e a espantosa cena do marido que leiloa, em altos brados, a própria mulher, numa feira de aldeia.
A edição da Itatiaia de "Judas, o obscuro" torna possível seja mantida, em nosso meio literário, a presença de um dos grandes romances de qualquer tempo. Em "Judas", lembra-nos Thomas Hardy uma das funções primordiais de quem escreve, que ele mesmo definiu como sendo simplesmente esta: "A finalidade maior do escritor é tocar o coração dos outros, mostrando o próprio."
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 22/06/2004
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