Por Ana Lucia Santa
50 anos de "Grande Sertão: Veredas" e de "Corpo de Baile". 40 anos de "Primeiras Estórias". Estes clássicos da literatura nunca foram tão atuais. Guimarães Rosa percorre, assim como seus personagens, uma odisseia em busca da chama eterna, da imortalidade. Ele se perpetua em sua obra, nos seus heróis, enveredando por trilhas que conferem à sua ficção um caráter universalista, ainda que ambientada no sertão mineiro, terra natal do autor.
Boa parte de sua obra retrata a travessia de um personagem em busca de sua própria identidade, tentando, a partir de um olhar voltado para o passado, elaborar em sua consciência tudo que se passa na tela de sua mente ao longo dessa travessia. Como Riobaldo, que para resgatar Diadorim do sono do esquecimento, narra sua história. Aliás, é a morte da amada que possibilita ao jagunço apossar-se da linguagem, pois é através da narrativa que ele procura compreender o passado, assim eterniza Diadorim em suas lembranças e cura as feridas de seu coração, ainda inconformado com sua perda. Da mesma forma o narrador do conto "Nenhum, Nenhuma", do livro "Primeiras Estórias", narra em primeira pessoa, com a cumplicidade explícita de sua memória, uma das personagens principais dessa história, tentando também compreender os dilemas que envolvem a aproximação da morte.
O narrador rosiano caminha como se estivesse perdido no labirinto de suas lembranças, encontrando as saídas após um árduo e doloroso esforço. Ao longo de sua odisseia, ele enfrenta a tensão entre a memória e o esquecimento, no resgate do passado, que não retorna em sua pureza original, mas é fruto de uma singular seleção dos fatos lembrados. Desvelar os códigos rosianos presentes em suas histórias exige também uma atenção à linguagem, ao tecer da narrativa. Afinal, ela tem o poder sagrado de ordenar o caos, de dar forma ao informe, de gerar vida, plena de significados, e é potencialmente capaz de extrair elementos do cotidiano e impregná-los de poesia.
A relação com a Morte e com o desejo de imortalidade está presente em toda a obra de Rosa, mas talvez com mais intensidade em "Primeiras Estórias". Uma eternidade que é dádiva recebida das mãos sagradas de Mnemosyne, por intermédio de quem são resgatadas as experiências do passado, elaboradas na consciência do narrador e transformadas em aprendizado de vida e de morte, preparando o narrador e seu alter-ego para o encontro com a Morte, na qual se revela a Vida, através da perpetuação, do não-esquecimento.
Em cada um dos contos deste livro o narrador configura sua experiência de forma diferente, atravessando estágios emocionais distintos, conforme o ponto do percurso em que se encontra. Tanto em "As Margens da Alegria", quanto em "Os Cimos", contos extremos do livro, ele se identifica profundamente com o protagonista, como se ele espelhasse sua própria trajetória, sua infância, como se assim universalizasse, de certa forma, essa travessia. Ou seja, ele tenta perceber o que há de comum na infância de cada menino, nessas delicadas passagens, em seus estados de alma, nos dolorosos conflitos, nas fascinantes descobertas.
Os personagens de Rosa parecem caminhar pelas veredas da memória, vagar pelos labirintos de sua psique, ser guiados pelos fios das experiências por eles vividas e não completamente elaboradas no plano da consciência. Eles são movidos pela necessidade de transmitir suas vivências, para melhor compreendê-las e ordená-las em sua mente consciente. Diante do tempo transcorrido, os protagonistas rosianos mantêm uma constante atitude interrogativa. Como Sherazade, personagem das "1001 Noites", que sobrevive à pena de morte decretada pelo sultão, mantendo acesa a chama da narrativa que desfia noite após noite diante da curiosidade do marido, os protagonistas da obra de Guimarães Rosa narram para viver. Afinal, inspirado pelas Musas, embriagado pelo entusiasmo – ‘enthousiasmós’, significando "divina habitação interior" ou "pleno de Deus" -, o poeta vê além da visão dos meros mortais e assim pode navegar pelo passado, em busca das lembranças, manjar de suas narrativas.
Na travessia empreendida por estes personagens, presente, passado e futuro se mesclam, como faces de um mesmo tempo, indo e vindo, blocos mágicos, ocultos, que saem de outros blocos, visíveis, manifestos, ao sabor de suas lembranças. Segundo Plotino, "existem três tempos, e os três resumem-se no presente. Um deles é o presente atual, momento da enunciação, que logo já é passado, o outro é o presente do passado, que se chama memória. E, finalmente, o presente por vir, como nossas esperanças ou nossos medos imaginam que será".
Pode-se dizer, talvez, que Guimarães Rosa persegue, através de seus heróis, as pegadas da verdade, que etimologicamente – "alétheia’ (de a + Lethe)" – significa "não esquecimento". Mas na obra rosiana nada é o que parece, portanto a imaginação, assim como a verdade, também é uma vereda que conduz à realidade. Vale relembrar que imaginar é lembrar, e lembrar é imaginar, movimento esse impelido pelo desejo de atravessar as neblinas do tempo – aqui simbolizado pelo rio -, que tenta impedir o retorno das lembranças, e assim alcançar as praias da memória. Seus personagens buscam, portanto, por um caminho ou outro – quem sabe por ambos - as luzes da Memória, na tentativa de aprender a viver para assim aproximar-se da arte de saber morrer.
Fontes
Grande Sertão Veredas – João Guimarães Rosa – Editora Nova Fronteira – 2001 – 624 pp.
Primeiras Estórias – João Guimarães Rosa – Editora Nova Fronteira – 2005 – 215 pp.
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