Trechos da obra “Notas do subsolo” ou “Notas do subterrâneo” do escritor russo Fiódor Dostoiévski.
Sucintamente, o protagonista é um homem que começa narrar seus pensamentos e vivências em meio a conflitos decorrentes da própria captação de suas motivações, tratá-los de acordo com as convenções ou não? Optando por retratá-los de forma crua, a razão é colocada em xeque; e o homem racional, que segundo a modernidade tem a razão para escolher o que é melhor para si, também é desnudo, restando somente aquele que nada sabe sobre suas motivações mais subterrâneas.
O homem tal como ele é, e as motivações de sua vontade, no confronto com a civilização, é um jogo de forças antagônicas na qual não é isento de intensos conflitos; nesse sentido, o narrador-protagonista é irônico com a moral e a ética do homem civilizado. Quer o homem corrigir a sua vontade com a ciência, mas como sabe que a educação lhe é realmente útil? – Talvez seja essa a inquietude que atravessa a obra, questionamento que ainda chega com todo ímpeto aos nossos tempos onde o homem está quase extinto, restando somente uma peça de engrenagem.
Existem pensamentos que só revelamos aos amigos mais íntimos. Outros, só revelamos a nós mesmos. Ainda outros, tememos a revelar a nós mesmos. O “homem do subterrâneo” é um escritor diante desses dilemas.
"Ah! Senhores! É possível que eu me considere extremamente inteligente pela única razão de que, em toda a minha vida, nunca pude começar nem acabar fosse o que fosse. Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como nós todos. Mas que fazer, senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água em uma peneira?"
"Que faremos então desses milhões de fatos que atestam os homens, tendo embora perfeita consciência do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminho totalmente diferente, cheio de riscos de acasos? Não são, entretanto, forçados a isso; mas parece que querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traçar livremente, caprichosamente, uma outra, cheia de dificuldades, absurda, mal reconhecível, obscura. É que essa liberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus próprios interesses… O interesse! Que é o interesse? Vós vos empenhais em me definir com toda a exatidão em que consiste o interesse do homem? Que direis vós se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano, em certos casos, pode ou mesmo deve consistir em desejar não uma vantagem, mas um mal? Se é assim, se esse caso se pode apresentar, então tudo desmorona. Que pensais disso? Tal caso pode se apresentar?"
"Com licença! Vamos nos explicar; não é com jogos de palavras que se pode esclarecer a questão. O que faz a singularidade dessa coisa, desse interesse, é que ele destrói todas as nossas classificações e altera todos os sistemas edificados pelos amigos do gênero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, é um embaraço, um obstáculo. Mas, antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo então com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar à humanidade em que que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torno logo virtuosa e nobre no seu esforço para atingir ditos interesses, declaro que tudo isso não passa de logística. Sim, pura logística!"
"(…) O sangue corre em borbotões, alegremente mesmo, como champanha. Vede nosso século XIX (…) Então, em que é que a civilização nos adoça? A civilização não faz mais que desenvolver em nós a diversidade das sensações… nada mais. E, graças ao desenvolvimento dessa diversidade, é muito possível que o homem acabe por descobrir uma certa volúpia no sangue. (…) Mas se a civilização não tornou o homem mais sanguinário, , tornou-o sem dúvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinário. Antigamente, o homem considerava que tinha o direito de derramar sangue, e era com a consciência bem tranquila que destruía o que bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efusão do sangue uma ação condenável, nem por isso deixamos de matar, e mais frequentemente ainda do que antes. (…)"
"Que sabe a razão? A razão não sabe senão o que aprendeu (…), ao passo que a natureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo o que ela contém em si, consciente e inconscientemente; acontece-lhe cometer disparates, mas vive."
"Em uma palavra, pode-se dizer tudo da história universal, tudo o que se apresentar à imaginação mais desregrada. Mas é impossível dizer que ela é racional; equivocar-vos-eis desde a primeira sílaba. E, ademais, eis ainda o que se passa constantemente: homens aparecem, sensatos e de bons costumes, filantropos, cujo fim é levar uma existência racional e honesta, a fim de agirem pelo exemplo sobre seus semelhantes e de lhes provarem que é possível viver sabiamente. Mas que acontece, então? Sabe-se que grande número desses amantes da sabedoria acabam, mais cedo ou mais tarde, por trair suas idéias e se comprometem em escandalosas histórias. Pois bem! Eu vos pergunto: o que se pode então esperar do homem, desse ser dotado de qualidades tão estranhas?"
"(…) quereis libertar o homem de seus antigos hábitos e corrigir-lhe a vontade segundo os dados da ciência e conforme o senso comum. Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde concluístes, que a vontade do homem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educação lhe é realmente útil?"
"(…) Ora, senhores, “duas vezes dois igual a quatro” é um princípio de morte e não um princípio de vida. (…) / É verdade que o homem não se ocupa senão da procura desses “duas vezes dois igual a quatro”; atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguição; mas quanto a encontrá-los, quanto a apanhá-los realmente – juro-vos que tem medo, pois ele se dá conta de que, uma vez encontrados, nada mais tem a fazer. (…) Tenta aproximar-se do fim, mas, tão logo o atinge, não está mais satisfeito; e isso é verdadeiramente bem cômico. Em uma palavra: o homem é construído de uma maneira muito cômica, e tudo isso faz o efeito de um trocadilho. Mas, seja como for. “duas vezes dois igual a quatro” é uma coisa bem insuportável."
Dostoiévski, F. Noites brancas e outras estórias. Ed. Martin Claret. Trad.: Isa Silveira Leal.
ETERNO RETORNO
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